Foi emocionante – de novo. Na segunda-feira, 28, ‘sobrevivente de si mesmo’ – como gosta de se definir -, Sílvio Tendler já subira em sua cadeira de rodas a rampa de acesso ao palco da tenda montada no Centro Cívico do Memorial da América Latina para abrigar o 9.º Festival de Cinema Latino-Americano. Ele conversou com o público, respondeu a perguntas e explicou como e por que, em circunstâncias aparentemente tão adversas – e mesmo que seu estado atual seja muito melhor do que quando ficou tetraplégico em 2011 -, ele tem conseguido fazer tantos filmes.
Em comparação com o ritmo anterior de sua carreira, ele anda febril, possuído pela urgência de criar e isso sem prejuízo da lucidez nem a preocupação com a linguagem. Sílvio voltou à tenda para receber, das mãos do cineasta João Batista de Andrade, presidente do Memorial, seu troféu de homenageado da 9ª edição. Foi aplaudido de pé, pela sala lotada (na segunda, não havia tanta gente).
Seguiu-se a cerimônia de premiação. O diretor Jefferson De, que havia sido mestre de cerimônias na abertura, entregou o troféu de melhor filme do público, “um prêmio que sempre quis ganhar”, disse. E o vencedor foi o mexicano Os Insólitos Peixes-Gatos, de Claudia Sainte-Luce, sobre uma jovem solitária que vai morar com mulher que conheceu no hospital e se integra à família, sentindo-se responsável pelos quatro filhos, à medida que o quadro da mãe piora. O júri internacional do Prêmio Itamaraty, integrado, entre outros, pelo ator e diretor cubano Jorge Perugorría, pelo francês Sylvain Auzou – cofundador de Venice Days, um evento paralelo do Festival de Veneza – e pela produtora argentina Lita Stantic, outorgou uma menção ao documentário A Morte de Jaime Roldós, coprodução equatoriano-argentina, com direção de Manolo Sarmiento e Lisandra Rivera, e que trata do suspeito acidente de aviação que acabou com o breve governo do presidente que vinha tentando mudar as arcaicas estruturas políticas e sociais do Equador.
O júri outorgou seu grande prêmio – um troféu que reproduz a mão espalmada, criação de Oscar Niemeyer – que é a marca do Memorial – a um filme da Argentina que já havia feito certa sensação na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, em maio. Refugiado, de Diego Lerman, trata de violência doméstica e o diretor subiu ao palco para dizer que seu filme começou a nascer quando ele viu uma mulher ser baleada pelo marido em frente à sua produtora. Refugiado é um road movie sobre mãe e filha que fogem do marido e pai violento. Embora jovem (38 anos), Lerman já tem uma obra consolidada que lhe garante a projeção em festivais internacionais. É o diretor de Tan de Repente, Mientras Tanto e La Mirada Invisible.
O festival encerrou-se com um filme inédito, o brasileiro Amparo, de Ricardo Pinto e Silva. A exibição de ontem foi particularmente importante para ele, porque o filme ainda não tem distribuição e havia um interessado na plateia (e ele pode sentir a reação positiva do público). Amparo conta uma história que parece batida, a da garota do interior que engravida na cidade grande e tenta se matar com seu bebê. Como reinventar o que parece conhecido? Pinto e Silva adota o formato de um falso documentário e ousa ainda mais ao realizar seu filme no esquema de obra cooperativada. Atores e técnicos contribuíram com seu trabalho.
Zero de leis de incentivo. Amparo, com seus enxutos 87 minutos, deve dar o que falar, isso, naturalmente, se, pequeno como é, furar o bloqueio e conseguir chegar ao mercado. Qualidades não lhe faltam, mas esse não é – forçoso é admitir – o atributo mais valorizado pelo mercado.
Numa breve conversa com o repórter, a produtora Lita Stantic reconstituiu sua trajetória. Como chefe de produção e, depois, produtora, trabalhou muito com Maria Luiza Bemberg, lendária diretora argentina de obras como Señora de Nadie, Camila, Miss Mary e De Eso no Se Habla (com Marcello Mastroianni), e mais recentemente, com Lucrecia Martel, em La Ciénaga/O Pântano, La Niña Santa e Mulher sem Cabeça. Lita deu notícias de Lucrecia, que está envolvida em dois grandes projetos e a dificuldade de financiamento tem dificultado que as coisas andem. Lita também lembrou a extraordinária figura de Leopoldo Torre-Nilsson, o mais polêmico e mundialmente conhecido autor argentino dos anos 1950 e 60. Para muitos críticos, era um Ingmar Bergman menor, mas, com a mulher, a roteirista Beatriz Guido, ele fez em seus filmes uma crônica política e social da Argentina de seu tempo. O repórter lembrou La Casa del Angel e Un Guapo del 900. Lita acrescentou, porque gosta muito, Homenaje a la Hora de La Siesta, parcialmente rodado no Brasil (na Amazônia). Torre-Nilsson arriscava na carreira. Lita lembra que era um jogador também na vida. “Jogava tudo, e às vezes ficava sem um peso. Vivia na corda bamba.”