Festas sem o embalo da boa música brasileira

O Brasil tem uma referência cultural. A nossa música é tão representativa que chega mais longe que a própria diplomacia. Nossos grandes embaixadores, desde sempre, foram grandes músicos, que fizeram temas que estão entrelaçados com a vida de todos nós (e de todo o mundo) nos últimos oitenta ou noventa anos. Em qualquer momento do ano, em qualquer parte do planeta é possível ouvir a boa música brasileira – ou a nem tão boa -ecoando por aí. Podemos dizer que temos uma “trilha sonora” para cada instante.

Quer dizer, quase temos. Quando chega o final do ano, as festas tão esperadas de Natal e Réveillon, colocamos o que temos pela frente, e não músicas especialmente criadas para este momento. Pior – aproveitamos o que outros países produziram para festejar a chegada do Papai Noel e do ano novo.

Curitiba tem uma grande tradição em eventos natalinos. Chega-se até a dizer que é a “capital do Natal”. Tudo por conta da decoração e, principalmente, pelo espetáculo das crianças no Palácio Avenida, que já superou os quinze anos e segue encantando locais e turistas, que lotam a Boca Maldita a cada apresentação. Mas vamos olhar para o repertório que as crianças cantaram neste tempo todo. É muito difícil encontrar uma canção brasileira que trate das festas do final do ano.

Ah, mas tem Noite Feliz… Apesar de estar entranhada nos nossos ouvidos, como o grande clássico das músicas natalinas, Noite Feliz não é uma canção brasileira, e sim uma adaptação de um tema internacional. Assim como Jingle Bells, que recebeu uma tradução famosa (“Bate o sino pequenino / sino de Belém…”) e até uma jocosa, que é melhor não ser escrita aqui. A rigor, são estas as canções que surgem na mente dos brasileiros quando se fala em festas de final de ano.

E esquece-se, talvez, a única música realmente brasileira que trata do assunto, a irônica Boas Festas, composta por Assis Valente, o famoso provedor de clássicos para Carmem Miranda. Com seu estilo característico, Assis expõe na música animada sua desilusão com o Natal e com na vida em si (“Papai Noel / vê se você tem / a felicidade pra você me dar / Eu pensei que todo mundo / fosse filho de Papai Noel (…) / Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu Papai Noel não vem / Com certeza já morreu / Ou então felicidade / É brinquedo que não tem…”).

Assis teve uma vida sofrida. Não por questão financeira (era dentista, e até que ganhou um bom dinheiro com as composições que fez para Carmem), mas sim por seus dilemas pessoais, que o consumiram e o levaram à morte. Eles estão ali, na letra de Boas Festas – que, por mais cruel que possa parecer, aparece todo ano nos corais pelo Brasil. E, convenhamos, até precisa aparecer, pois saindo da leitura psicológica da letra, é possível encontrar também a crítica social, por conta daqueles que também não conhecem o brinquedo “felicidade”, mas por outras razões.

Ainda há outra música conhecida com o tema natalino, que é Presente de Natal, de Nelcy Noronha. Foi muito gravada pelos conjuntos vocais das décadas de 1940 e 1950, mas tem sua versão definitiva com João Gilberto, em seu terceiro álbum na Odeon (João Gilberto). E é, na verdade, um samba que usa o Natal como complemento do romance do personagem da canção (“Papai Noel me deu / um bom presente de Natal / você embrulhadinha / num papel monumental / Quem ganha boneca / é menina, eu sei / mas eu sou menino / e também ganhei / não foi uma bola / nem sequer um cavalinho / mas foi você, amor / que veio então / pra ser o meu benzinho”). Na interpretação clássica de João, h&aac,ute; também o piano de Tom Jobim a liderar a parte instrumental.

Mas é pouco para um País tão musical como o Brasil. Tanto que quando Simone lançou seu disco festivo (25 de Dezembro), ela foi massacrada pelos críticos, que não aceitaram o estilo do álbum e as versões para músicas como Happy Xmas (War Is Over), de John Lennon, que virou Então É Natal. Mesmo assim, foi uma experiência singular, que teve amplo sucesso comercial, mas que pela irritação da crítica não foi mais repetida.

Enquanto isto, nos Estados Unidos, todo ano dezenas de artistas lançam seus produtos de final de ano – até porque lá há composições não só para o Natal, mas também para o Ano Novo (como What Are You Doing The New Year’s Eve?). Uma rápida pesquisa em um dos principais sites de venda de CDs do planeta aponta a diversidade dos artistas que já gravaram as músicas natalinas: Andrea Bocelli, Sting, Bob Dylan, Michael Buble, Sugarland, Yo-Yo-Ma, Enya, Neil Diamond, Tori Amos, James Taylor, Andy Williams, Mariah Carey, Bing Crosby, Faith Hill, Barry Manilow, Diana Krall, Frank Sinatra, Celine Dion, Jackson Five, Ray Charles, Elvis Presley… Sem preconceito algum. Pelo contrário, todos cantam porque gostam dos temas e porque sabem que o público gosta – até mesmo da música da rena do nariz vermelho.

Falta ao Brasil o interesse de um grande compositor em criar músicas para o final do ano. Se o primeiro fizer, outros certamente vão segui-lo. E podemos firmar uma tradição para as próximas gerações – a de termos um Natal e um Ano Novo tão brasileiros quanto o resto do ano.

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