Quem sabe seja vingança, uma doce vingança. Quando Fernanda Takai falou em gravar Amar Como Jesus Amou, seus amigos de Pato Fu responderam com sorrisos de coroinha. Só poderia ser brincadeira. Uma música católica da missa das dez feita por Padre Zezinho e cantada por Padre Fábio de Mello ultrapassava a linha das transgressões de uma banda acostumada a andar fora do quadrado desde sempre, a ponto de ser comparada em seus primórdios aos Mutantes. Takai guardou a ideia sem imaginar que um dia a comeria como um sushi frio. O dia chegou. E o disco que acaba de sair, Na Medida do Impossível, financiado pelo projeto Natura Musical, traz criatividades desconcertantes como a versão para a canção cristã que a faz soar uma ousadia às avessas, a manifestação invertida de um tamanho que talvez nem a própria Fernanda Takai tenha ciência.
A voz pequena de Fernanda, que já foi o calcanhar de Aquiles, tornou-se a medida de seu impossível. Se tivesse investido em empostação, como as grandes, poderia ser uma frustrada escrava de si mesma. Ao mesmo tempo em que, na melhor das hipóteses, atingiria regiões mais altas e teria recursos nos graves, seu universo estaria ironicamente restrito ao formalismo. Takai só pode abraçar o mundo porque não o leva a sério, deixando que seu fio de voz migre de Padre Zezinho a Belchior, de George Michael à Jovem Guarda, de Reginaldo Rossi ao Trio Ternura sem transformá-la em um Frankenstein. Assim, ganhou carta branca da crítica e do público que a deixa juntar, se quiser, Michael Jackson com Banda de Pífanos de Caruaru. Seu amor doce e seu humor pueril fazem a costura improvável ganhar sentido. Não há tiros para todos os lados, mas um tiro só.
Amar Como Jesus Amou vai longe com o arranjo eletrônico de game pensado pelo japonês Toshiyuki Yasuda e a voz de Padre Fábio em parte do refrão. Seria corajosa só por isso, mas acerta ainda mais onde não mira quando consegue um efeito dessacralizante da gravação original, operando o milagre da transformação do proselitismo católico em canção pop. Uma ousadia em anos de música brasileira esterilizada. A vingança da fofura. Do outro lado da ponte, pega Heal The Pain, de George Michael, e faz sua música de brinquedo do momento. A voz de Samuel Rosa, em tom mais baixo que os usados pelo Skank, perde em brilho e fica até dispensável ao lado das braçadas de Takai. Suas paixões, que nunca são legitimadas por derramamentos de sangue, estão aqui entregues com açúcar e com afeto na versão em português feita pelo marido e parceiro de Pato Fu, John Ulhôa. Heal the Pain vira Pra Curar Essa Dor.
Há uma força autobiográfica nessa história. Os olhos puxados de Fernanda Takai vêm do pai geólogo, filho de japoneses, e o resto da mãe enfermeira, filha de português com alagoana. Takai nasceu em 1971 na Serra do Navio, Amapá. Aos 2 anos, as escavações do velho a levaram a Salvador e, depois, a Jacobina, no interior da Bahia, onde viveu até os 8 anos. Minas só vem aqui, quando Takai se muda para Nova Lima e, finalmente, Belo Horizonte.
O rádio estava ligado o tempo todo e por ele entravam Benito di Paula, que ela relembra na regravação rock do sambão joia Como Dizia o Mestre, e Reginaldo Rossi, com Mon Amour, Meu Bem, Ma Femme, que ela canta com Zélia Duncan, como fizeram em 2011 no carnaval do Recife. É o grande arranjo do disco, pensado pelo produtor John. Ela anda ainda por Julieta Venegas, fazendo versão em português para Doce Companhia; pela Jovem Guarda gravando A Pobreza, famosa com Leno e Lilian; por Pitty, com quem dividiu a criação de Seu Tipo; pelo poeta Climério Ferreira, de quem musicou os versos de Quase Desatento; e pelas graças do Trio Ternura, regravando Liz. Deleites de uma rara espécie de artista livre. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.