Você pode até achar que, se é para ser uma homenagem, a programação que o Canal Brasil presta a Fernanda Montenegro, sempre às terças e quartas deste mês de outubro, e na mesma faixa das 22h, omite filmes importantes, verdadeiros clássicos do cinema brasileiro. Fernanda comemora 90 anos, e o canal brasileiro lembra a data (16 de outubro de 1929), significativamente num momento em que a grande dama do audiovisual no País sofreu agressão verbal, sendo chamada de ‘sórdida’. Não reagiu, fez silêncio. A classe, indignada, reagiu por ela.

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Cinema, teatro e televisão. É até difícil tentar lembrar momentos importantes dessa trajetória tão rica. Onde estão A Falecida, de Leon Hirszman, adaptado de Nelson Rodrigues? E Tudo Bem, o início da trilogia entre quatro paredes de Arnaldo Jabor, que colocou num apartamento que está sendo reformado o próprio País, que brigava por abertura política, nos anos 1970? E Eles não Usam Black-Tie? de Leon Hirszman, mais uma vez, que se baseou na peça de Gianfrancesco Guarnieri, criando aquele final antológico, após o final da greve, furada pelo filho de Romana e Otávio, e que termina com o casal catando feijão e jogando no lixo os grãos podres?

Faltam, no plural, mas o que sobra, oito longas e um curta, consegue dar conta do imenso talento da atriz e da enormidade de sua contribuição para a cultura brasileira.

Fernanda nasceu Arlette Pinheiro Esteves da Silva, numa família portuguesa, com certeza, no subúrbio do Rio. Desde cedo, a grande diversão familiar era ir ao cinema, e foi assim que ela criou o que chama de “meu refúgio imaginário”. Tornou-se rádio-atriz e atriz de teatro, os filmes vieram mais tarde.

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De cara trocou o nome e, depois, para ter uma Fernanda de verdade na família, foi assim que batizou a filha, que também é atriz (e cronista, escritora) – Fernanda Torres. Prêmios, ganhou tantos que não há estante que segure o peso de tantos troféus – mas faltou o Oscar, para o qual foi indicada por Central do Brasil, de Walter Salles, mas não levou.

Ganhou, de qualquer maneira, o Urso de Prata em Berlim e o ouro do festival foi para o próprio filme, em 1998. Em Cannes, a primazia foi da filha, que ganhou em 1986 por outro Jabor, Eu Sei Que Vou Te Amar. Essas Fernanda, no plural, são demais.

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A programação abre-se nesta terça-feira, dia 1º, às 22h, com o especial Fernanda Montenegro – 90 Anos e a exibição justamente de Central do Brasil. Dora, a escritora de cartas da Central de trens do Brasil, é uma trambiqueira que joga no lixo os sonhos das pessoas analfabetas que procuram seu auxílio. Mas algo se passa e essa mulher se toca com o desafio no olhar do menino – Vinicius de Oliveira. Com ele descobre uma ética que nem sabia possuir, ética. Atravessa o Brasil para entregá-lo à família. O Brasil atual deveria mirar-se nesse espelho. Os filmes vão prosseguir sempre às terças e quartas, sempre na faixa das 22h.

Confira:

Dia 2: Casa de Areia, de Andrucha Waddington, 2005

O genro de Fernanda, marido de sua filha Fernanda Torres, dirige as duas. Mãe e filha representando mulheres em diferentes épocas da vida, ou diferentes épocas da vida de uma mesma mulher. Áurea, Dona Maria e um morador local, Massu, tentam sobreviver no imenso areal dos Lençóis Maranhenses. Um visual de cortar o fôlego, e o tempo que se escreve no céu, com a passagem de balões e aviões.

Dia 8: O Tempo e o Vento, de Jayme Monjardim, 2013

O “novelão” em que o diretor transformou o romance do escritor Erico Verissimo privilegia o cerco ao sobrado e os episódios fundadores da identidade do homem gaúcho – Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo. Fernanda faz a velha Bibiana, que conta a história e, quando jovem, é interpretada por Marjorie Estiano. Belíssimas imagens como o diretor, desde a novela Pantanal, gosta. Affonso Beato assina a fotografia, um luxo.

Dia 9: Traição, de Cláudio Torres, Arthur Fontes e José Henrique Fonseca, 1998

Três histórias de adultério, adaptadas das crônicas do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues. O Primeiro Pecado, Diabólica e Cachorro. O jovem tímido que conhece o sexo com mulher casada (e fogosa); a noivinha que é traída pela própria irmã, que não sossega enquanto não faz sexo com o futuro cunhado – Fernanda faz a mãe das duas; e o marido que surpreende a mulher e o melhor amigo num hotel de quinta categoria.

Dia 15: O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, 2000

Feito em HD, no formato de microssérie em quatro capítulos, foi editado para passar nos cinemas como filme. Baseado em Ariano Suassuna, conta as aventuras de João Grilo e Chicó, que envolvem a Igreja e cangaceiros. Tudo converge para o julgamento no céu, onde a sorte da dupla depende de Nossa Senhora. Alguma dúvida de que Fernanda, como a Compadecida, conseguirá enternecer o Filho (Jesus) e salvar as almas desgarradas?

Dia 16: O Outro Lado da Rua, de Marcos Bernstein, 2005

Bernstein, corroteirista de Central do Brasil (com João Emanuel Carneiro), escreve e dirige a história de Regina, aposentada de Copacabana que passa o tempo espionando os vizinhos de binóculo (e informando sobre pequenos delitos à polícia). Um dia ela vê o que lhe parece um homem que mata a mulher. A polícia intervém, o óbito é considerado natural, mas Regina envolve-se perigosamente com Raul Cortez para tentar provar que estava certa. Ecos de Alfred Hitchcock, Janela Indiscreta, e um filme muito bem interpretado, com grande riqueza de observação (e atmosfera).

Dia 22: O Beijo no Asfalto, de Murilo Benício, 2018

A peça de Nelson Rodrigues ganha uma versão das mais originais. Atores e até o diretor Amir Haddad se reúnem em torno de uma mesa de trabalho para ler o texto e comentar as intenções do autor. Cenas chaves são filmadas e a simples presença de Lázaro Ramos turbina o debate racial. Fernanda é decisiva, falando da personagem e do Nelson que conheceu.