Fellini para ter em casa

Talvez seja interessante repensar, à luz de Federico Fellini, o conceito do transe no cinema de Glauber Rocha. Quem possibilita essa discussão é a Versátil, que iniciou uma coleção de DVDs dedicada ao polêmico autor brasileiro com a versão restaurada de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

A Versátil também colocou nas locadoras e lojas especializadas um pacote com quatro DVDs de Fellini. Três já haviam sido lançados anteriormente pela distribuidora: Mulheres e Luzes, Noites de Cabíria e Ensaio de Orquestra. O lançamento mais recente, e que fecha o pacote com direito a embalagem especial com a cara do mestre maquiado como palhaço, é Ginger e Fred.

São Paulo

(AE) – Tem havido boas discussões sobre Fellini. Os Palhaços finalmente estreou, e continua em cartaz nos cinemas brasileiros, mais de 30 anos depois de ter sido feito para a TV italiana. Voltaram, no Festival Marlboro do Unibanco Arteplex, três outros filmes de Fellini que a distribuidora Mais promete relançar este ano nos cinemas: Fellini Satyricon, Roma de Fellini e Amarcord. Se você perdeu esses filmes durante o Festival Marlboro, prepare-se porque eles vão voltar. É onde entra o conceito da descontinuidade.

Em Glauber, a descontinuidade narrativa foi sempre considerada formulação estética (e teórica) para que o autor pudesse discutir a relação entre colonizadores e colonizados. A descontinuidade em Glauber compõe a pedra de toque do “transe” glauberiano. Já que um momento da vida e da cultura da colônia não corresponde necessariamente ao anterior nem prepara o futuro, mas a evolução é sempre ditada em função da evolução da vida e da cultura na metrópole, Glauber assumiu a descontinuidade como base do seu discurso crítico. Radicalizando, chegou ao transe.

Bem, ele não estava sozinho. É o que tem deixado claro a reedição dos clássicos fellinianos. Fellini, com certeza, não estava pensando as relações entre colonizados e colonizadores, mas ele não apenas percebeu como ajudou a formatar as mudanças que ocorreram no cinema dos anos 1960. A Doce Vida antecipa as mudanças de comportamento que marcaram aquela década, mas houve também as mudanças estéticas. Oito e Meio anunciou alguma coisa muito importante – uma maneira mais fragmentada de narrar, que o autor foi radicalizando nos filmes seguintes.

Influência do nouveau roman, de Jean-Luc Godard, simples desejo de boicotar o cinema essencialmente narrativo de Hollywood? Talvez tudo junto. Filmes como Satyricon, Roma, o próprio Amarcord, os posteriores E la Nave Va e Fellini Entrevista, radicalizando a estética de Oito e Meio, não contam propriamente histórias, mas compõem um variado caleidoscópio de emoções e sensações que desvendam códigos sociais e de comportamento. O mais interessante desses filmes é Roma, que impressiona pela beleza isolada das cenas mas chega a produzir desconforto pela maneira como o cineasta descontrói sua história, a rigor, inexistente.

Vestígios dessa descontinuidade já estão presentes em As Noites de Cabíria e A Doce Vida. E prosseguem em Ginger e Fred, o filme possivelmente mais desconcertante de Fellini. O título promete uma celebração do mito de Fred Astaire e Ginger Rogers, o maior casal de dançarinos do cinema, mas o que Fellini propõe é a trama (história?) envolvendo um casal de dançarinos tão decadentes que Marcello Mastroianni e Giulietta Masina tiveram de ser maquiados um tanto grotescamente para criar seus personagens. A falsa Ginger e o falso Fred participam de um programa de TV. Fellini, nos anos 1980, já havia percebido tudo. A Doce Vida virou amarga. O romantismo foi destruído pela degeneração moral e estética promovida pela violência cotidiana da TV. Em 1985, era possível sentir estranhamento diante desse filme de um autor que parecia tão misantropo. Hoje, talvez seja possível constatar que Fellini, na verdade, só estava antecipando a barbárie dos novos tempos.

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Coleção Federico Fellini. Lançamento da Versátil com 4 DVDs: Ginger e Fred, Mulheres e Luzes, As Noites de Cabíria e Ensaio de Orquestra. Pacote: R$ 134; cada DVD, R$ 34,80.

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