A lâmina rasga a pele sem dificuldade. Arde. Dói. Sangra. Canções e poesias também podem cortar se afiadas demais. É uma brincadeira perigosa na qual se entra por conta e risco. Felipe Antunes, vocalista do grupo Vitrola Sintética, banda indicada para o Grammy Latino em duas categorias (revelação e engenharia de som), sentiu a agonia ao tirar, de dentro de si, as faixas e textos que integrariam o primeiro trabalho solo dele. Tudo nascido no íntimo da solidão do seu quarto e, agora, esparramado para o mundo.

continua após a publicidade

O nome escolhido, assim como a capa, não poderia ser mais direto diante desse conceito: Lâmina. Trata-se de um livro-álbum que reúne, em suas páginas, poesias escritas pelo músico, fotografias em preto e branco e o CD encartado com as 12 canções bastante pessoais e delicadas. Amores definham ao som da voz frágil e suave de Antunes, enquanto seus arranjos singelos, por muitas vezes minimalistas, pavimentam a via para sua passagem. “Esse disco pode cortar. Essas poesias podem cortar”, explica o músico.

Lâmina nasceu quase simultaneamente a Sintético, terceiro álbum do Vitrola, responsável por levar a banda à indicação para o Grammy e expor o talento do quarteto formado ainda por Otávio Carvalho (baixo), Rodrigo Fuji (guitarra) e Marcelo Bonin (bateria). Não é por acaso que, durante a entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Antunes mencionou o álbum produzido com a banda um incontável número de vezes. Lâmina e Sintético nasceram de um mesmo fluxo criativo, nos idos de 2014. O trabalho solo deriva diretamente do experimento em Inconsciente Inconsistente, música escolhida para encerrar Sintético na qual a primeira metade, quando voz e violão de Antunes se espalham vagarosamente, sem a preocupação de limpar os ruídos, poderia facilmente se encaixar no material de Lâmina.

“Estava produzindo muito naquela época”, lembra Antunes. “Comecei a fazer alguns experimentos de gravação caseira com um aparelho de fita cassete. Inconsciente Inconsistente nasceu assim. Gravar essas canções levaria muito tempo. O Sintético demorou um ano para ficar pronto.” Incentivado por Ota, como é apelidado o baixista do Vitrola, Antunes seguiu a ideia de trabalhar em Lâmina. Reuniu amigos para formar uma banda. Nomes como de Ota (órgão), Kezo Nogueira (bateria e percussão), Leonardo Mendes (violão), Chicão (piano), Meno Del Picchia (baixo e violão), Wem Mason (baixo) e Thomas Rohrer (rabeca) se reuniram no estúdio Submarino Fantástico para a criação do disco. “Eles não são músicos de estúdio. São criadores. Foi determinante escolher as pessoas que estariam comigo.”

continua após a publicidade

Hélio Flanders, vocalista do Vanguart, foi convocado para participar de Telepatizar, segunda faixa do trabalho. Ná Ozzetti e Juliana Perdigão protagonizam um dueto em Esse Moço. Mas, mesmo acompanhado por tantos, Antunes entrega um trabalho que tem uma carga pessoal enorme, desde a abertura do álbum. A primeira música, de 50 segundos, é um registro da voz materna dele, Natália Alzira, na qual ela canta alguns versos de uma canção que aprendeu quando menina e está gravada nas memórias do neto músico.

Em Vai por Mim está a herança paterna. Rohrer usa no registro uma rabeca construída pelo avô paterno de Antunes. “Não sei direito a história desse instrumento. A minha avó nunca soube me explicar exatamente, mas ao que parece o meu avô criou essa rabeca aos 15 anos.”

continua após a publicidade

Ao trazer suas origens para a disco, Antunes expõe ainda mais quem é, como chegou até aqui, de forma mais sutil que as poesias que integram o livro ou nas canções do álbum. Ouviu de Mauricio Pereira, cantor e compositor paulista que assina o prefácio do livro, que Lâmina é um “disco para se ouvir sentado, numa cabana isolada”. “É um trabalho que vai muito para dentro, muito introspectivo e pessoal, mesmo”, sentencia Antunes.

E ele foi tragado para dentro de si, na solidão do quarto, enquanto remexia em sentimentos encaixotados e guardados em um porão escuro. “Outro dia, ouvi uma discussão sobre inconsciente literário”, ele continua. “E falávamos se fazia bem ou não se aprofundar em questões que, muitas vezes, o autor não conhecia, mexer em um buraco doloroso. Esse disco me ajudou a refletir sobre muitos aspectos.”

A faixa Pretensão, quarta do álbum, contudo, foi além. Como a lâmina metafórica que dá nome ao trabalho, ela abriu uma ferida involuntariamente. Violão, piano e órgão deixam o protagonismo para os versos quase sussurrados por Antunes. Palavras ali reunidas numa confissão de saudade: “Seria simples, natural te agradecer / Agradecer por todo o tempo e despedir / Seguir em frente, ir parando de pensar / Mas é difícil, não passou nem vai passar / Porque é sinal de que essa história vive aqui”. E culmina no grito de desespero velado: “E no silêncio que cê faz / A gente morre um pouco mais”.

“Pude entender que muito do que eu passei foi importante. Compor essas canções me fez bem”, conta Antunes. O ferimento da lâmina, cedo ou tarde, se fecha e é deixado para trás. A cicatriz, contudo, fica ali, exposta. “Essa música (Pretensão) é uma das que mais mexeram comigo nesse sentido. Até hoje, eu acho estranho cantá-la. Dá a impressão de que todos estão olhando e pensando naquela canção como algo muito particular da minha vida. Existe essa sensação de exposição absoluta”, acrescenta Felipe Antunes.