Certas imagens de Doris Day são perenes no panteão dos cinéfilos. A mãe desesperada que canta, com a voz dilacerada pela emoção, Che Sera Sera, na expectativa de que o filho sequestrado a ouça em O Homem Que Sabia Demais, de Alfred Hitchcock, de 1956; a vizinha ciosa de sua virgindade que divide a linha telefônica com o garanhão do prédio e ele, interpretado por Rock Hudson, finge que é gay para quebrar a resistência de Doris em Confidências à Meia-Noite, de Michael Gordon, 1959. A ironia é que Hudson era gay de verdade, mas vivia no armário para manter o mito da própria virilidade. O cara não se chamava “Rock”, rocha, por acaso. Estamos falando de dois filmes, apenas, e Doris fez muitos.

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Antes de virar estrela de cinema, cantou, desde muito cedo – 17 anos -, em big bands. Tinha uma voz de veludo, e estourou com Sentimental Journey, em 1945.

Os críticos diziam que ela era careta, e criaram, para defini-la, a expressão “virgem do hímen de aço”. Era uma tentativa de ridicularizar as comédias que Doris interpretou com Rock Hudson – e também com Cary Grant, James Garner -, nos anos 1960. A caretona não era apenas um fenômeno de bilheteria – a queridinha da América, no seu tempo. Nos anos 1980, quando Rock Hudson, devastado por complicações decorrentes da aids, assumiu que era gay e estava morrendo, foram as amigas Elizabeth Taylor e Doris que cerraram fileiras com ele, forçando a América a encarar a pandemia que o governo conservador de Ronald Reagan tentava minimizar, senão ignorar. A aids era chamada de câncer gay, associada à promiscuidade de homossexuais. Castigo de Deus, diziam os conservadores. Quando atingiu a rocha Hudson e Liz e Doris iniciaram sua cruzada, tudo mudou. Criou-se uma nova consciência planetária. A careta, afinal, não era tão careta assim. Era solidária. Não representava nenhuma maioria silenciosa. Tinha abertura para o outro.

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Doris Day estava há tanto tempo quieta, no seu canto, que para muita gente foi um choque descobrir que morreu nesta segunda, 13, em Carmel Valley, na Califórnia, aos 97 anos. Mais um pouco e se teria tornado centenária. Estava viva, então? Viva, sim. Sobreviveu a vários casamentos, ao marido e agente que roubou sua fortuna. Sobreviveu à morte do filho, Terry Melcher, mas a tristeza foi tão grande que se recolheu e se dedicou à proteção dos animais, criando a Doris Day Pet Foundation. Morreu mansamente, segundo os testemunhos.

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Doris Mary Ann von Kappelhoff nasceu em 3 de abril de 1922, em Cincinnati, Ohio. No mesmo dia e mês, mas em 1924, nasceu Marlon Brando, ambos arianos, mas o ascendente devia ser tudo, porque não existiam pessoas de temperamento mais distinto. Ele, transgressor por natureza; ela, a eterna virgem (que não era). Em 1939, Doris já cantava em big bands. Em 1941, já atuava em filmes, mas só estourou 12 anos mais tarde, de arma em punho, e cantando, como a pistoleira Calamity Jane no western Ardida como Pimenta, de David Butler. Talvez fosse assim, na vida. Groucho Marx, que dizia que a conheceu antes de ela ser virgem, contava que Doris fazia o que fosse preciso, na noite, para seguir carreira.

Em 1955, substituiu Ava Gardner na cinebiografia da cantora Ruth Ewing, indecisa entre um pianista e um gângster, em Ama-me ou Esquece-me, de Charles Vidor. Revelou-se ótima atriz dramática e ainda cantava, divinamente, o tema Love Me or Leave Me. No ano seguinte, O Homem Que Sabia Demais, novo desafio dramático, e Che Sera Sera. Emendou uma sucessão de comédias a partir de Confidências à Meia-Noite, mas não resistia a um drama. A Teia de Renda Negra, de David Miller – em que o marido, Rex Harrison, queria matá-la. Doris Day recebeu o Grammy Lifetime Achievement, um Oscar e um Globo de Ouro honorários. Cantando ou atuando, deixou uma marca.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.