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Falência moral

Parece involuntário, mas há, sim, uma coerência. Ao escolher a peça A Visita da Velha Senhora, que estreia sexta-feira, 18, no Teatro do Sesi, como seu trabalho atual, a atriz Denise Fraga fecha uma trilogia sobre o dilema entre a ética e o dinheiro. Afinal, os dois espetáculos anteriores delineavam a tortuosa relação do poder com os conflitos morais vividos por seus personagens.

“De uma certa forma, caminhamos com coerência nos últimos anos”, disse ela à reportagem, após um ensaio geral do texto escrito pelo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990). Como Brecht, ele explorou as diversas linhas do teatro épico ao escrever peças que se resumiam a entretenimento, mas que buscavam envolver o público em um debate teórico.

E não foi à toa que os dois espetáculos anteriormente montados por Denise foram assinados pelo mesmo Brecht – em Alma Boa de Setsuan (que foi um dos arrasa-quarteirão da temporada 2008), a protagonista questionava: “Como posso ser boa se tenho que pagar o aluguel? Como posso ser boa e sobreviver no mundo competitivo em que vivemos?”. Já em Galileu Galilei (que estreou em 2015), a chave da discussão era: “Como posso ser fiel ao que penso sem sucumbir ao poder econômico e político vigente? Como manter meus ideais comprando meu vinho bom?”.

Encenada pela primeira vez em 1956, a trama de A Visita da Velha Senhora se passa na decadente cidade de Güllen, onde os habitantes aguardam ansiosos a chegada de uma ex-moradora, Claire Zachanassian (Denise). Se deixou o vilarejo como uma pobre jovem envergonhada por uma gravidez solitária, a hoje velha senhora se tornou milionária ao saber tirar proveito do próprio corpo e retorna com a promessa de salvar o município da falência.

No jantar de boas-vindas, porém, Claire surpreende a todos ao impor uma condição: doa 1 bilhão à cidade se alguém matar Alfred Krank (Tuca Andrada), o homem por quem foi apaixonada na juventude e que a abandonou grávida por um casamento de interesse. A primeira reação é um clamor indignado e promessas de ninguém atender ao pedido. Ciente de que o tempo logo traz soluções, Claire decide esperar e se hospeda com seu séquito no hotel da cidade.

Assim, aos poucos, todos (com exceção do professor da escola, mas que se rende ao conformismo) se convencem de que Krank merece pagar pelo seu erro ao mesmo tempo em que já sonham o que fazer com o dinheiro oferecido por Claire. O enredo que começa com tons de comédia se transforma em um drama incômodo, uma crítica violenta à ideia do pensamento único, à força do dinheiro, à ganância e à perda absoluta de valores éticos e morais.

“Krank é abandonado da mesma forma que Claire foi, anos antes, com uma autoestima beirando o zero”, comenta Tuca. “Assim, ele aceita a morte. Não tem saída.”

“Dürrenmatt foi discípulo, bebeu em Brecht”, analisa Denise. “Lá, está o mesmo fino humor, a mesma ironia e teatralidade. Dürrenmatt também se faz valer do entretenimento para arrebatar o público para a reflexão.”

“Seu texto é uma aula de roteiro”, completa Luiz Villaça, mais conhecido como cineasta, mas que aqui retoma a função de encenador que exerceu antes em Sem Pensar, de Anya Reiss, e A Descida do Monte Morgan, de Arthur Miller. “Dürrenmatt aponta o diagnóstico em vez de oferecer o remédio. Aqui, ele mostra, sem psicologismo, que a justiça nasce da conveniência.”

De fato, a trama – que teria inspirado Jorge Amado a escrever o romance Tieta do Agreste – é narrada por frases rápidas, quase telegráficas. “Além do texto que se assemelha a uma partitura, com uma pontuação perfeita, Dürrenmatt conhecia suas plateias, chegava a viajar para observar a reação do público”, conta Denise. “Ele dizia que a comédia é a expressão do desespero e que a tragédia do mundo moderno só é passível de representação no palco com humor.”

Denise Fraga impressiona em cena. Mais conhecida por seus inúmeros recursos de comédia, ela desenha Claire como uma vilã da cabeça aos pés, mas sem perder o charme, o que desnorteia o público, incapaz de saber se apoia ou condena sua obstinação. “Fizemos uma escolha arriscada ao mostrar Claire como um monstro fabricado pelo capital e, ao mesmo tempo, uma mulher jocosa, sedutora, encantadora”, conta a atriz, que surpreende até na forma de transmitir vilania pela voz. “Mas esse dualismo a transforma em uma personagem fascinante.”

Ao mesmo tempo em que desmascara a pequena Güllen, o dramaturgo suíço coloca o público em situação de eterna dúvida. “Nos ensaios abertos, ficamos encantados ao descobrir que os espectadores se sentiam questionados pelo dilema que move os personagens”, comenta ainda Denise. “Mais uma prova de que o teatro dá voz à angústia do ser humano.”

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