No próximo dia 6 fará cem anos que Emma Riccini Rubinato pariu um garoto sapeca em Valinhos e deu a ele o nome de João Rubinato. Na escola, João não passou do terceiro ano. Não era a área dele, tinha de escolher outra. Fez o que apareceu. Trabalhou com o pai na Estrada de Ferro São Paulo Railway, depois entregou marmita do Hotel Central, onde aprendeu a arte de afanar pastéis e bolinhos. Que custou o emprego, porque descobriram as afanações. Depois virou mascate. Não deu: ‘Comprava par de meia por dez mil réis e vendia por oito, para acabar logo com a mercadoria e me mandar para casa’. Não tinha lucro. Pior, tinha prejuízo. Foi ser garçom, metalúrgico, até virar radialista, comediante, ator de cinema e TV, cantor e compositor. De samba. Em São Paulo, o maior túmulo do samba depois de Curitiba.
Como tinha sobrenome italiano, João resolveu mudar para emplacar seu samba. E como ia mudar o sobrenome, mudou o nome. Virou Adoniran Barbosa. O cara falava errado, voz rouca, pinta de malandro da roça, chapéu de malandro da cidade, casaco de conquistador de quermesse e gravata borboleta de ator de cinema mudo. Queria ser galã. Estava difícil. Ainda assim, Adoniran não desistiu. Fez papel de cangaceiro no cinema, comediante no rádio e sambas para quem gravasse. Virou ícone da música brasileira, o mais paulista de todos, falando errado e irritando Vinicius de Moraes, que ficou de bico fechado depois de ouvir a música que Adoniran fez para a letra Bom Dia Tristeza, de autoria do poetinha. Coisa de arrepiar.
Adoniran era um fenômeno -talvez diria ‘fenomio’. Dos grandes. Trem das Onze venceu concurso de música carnavalesca no Rio de Janeiro, no ano do quarto centenário da cidade, espantando cariocas e paulistas. Ele não fazia concessões, não abria mão de falar errado. Levou a fala errada para as letras. Mais estranho: emplacava. O Samba do Arnesto é um monumento à fala errada, assim como Tiro ao Alvaro. Trem das Onze virou hino paulistano, apesar de alguns acharem que o tal hino seja Ronda, de Paulo Vanzolini e outros, Sampa, de Caetano Veloso. Trem das Onze virou sucesso na Itália com o nome de Figlio Único, uma música que fala de um sujeito que larga a mulher porque tem de trabalhar no dia seguinte e, além disso, a mãe não dorme enquanto ele não chegar.
Vinicius, simplesmente, não entendia como um sujeito falava errado e fazia sucesso com uma música que era exatamente o oposto da apologia ao malandro. E o poeta não estava sozinho na implicância semântica, meio ortográfica e um pouco gramatical. A censura batia martelo com ele. Ela pegou a letra de Tiro ao Alvaro e vetou. Como seguinte argumento: ‘A falta de gosto impede a liberação da letra’. E assinalou três palavras fatais: tauba, artomorve e revorve. Nem precisava anotar que o compositor confundia o ouvinte ao dizer Alvaro, quando deveria dizer alvo. Para toda esta gente que implicava, Adoniran tinha uma resposta neo-erudita: ‘Gosto de samba e não foi fácil, pra mim, ser aceito como compositor, porque ninguém queria nada com as minhas letras que falavam nóis vai, nóis fumo, nóis fizemo, nóis peguemo. Acontece que é preciso saber falar errado. Falar errado é uma arte, se não vira deboche’. Ignorantes eram os outros que não entendiam coisa tão elementar.
Agora, o trabalho de Adoniran foi um pouco além do samba. Nóis viemos aqui pra quê? vai além do gênero, a não ser que admita a categoria de samba de Blumenau, pois aquilo é influência de música folclórica alemã. Algo semelhante acontece com Tocar da banda. Esta a vantagem do sujeito que cria um estilo. Ele dá as cartas. Foi que Adoniran fez. Por trás da aparente ingenuidade, era um cara esperto. Que tinha de se virar com sua esperteza. A história de Iracema, que morreu na contramão, também é curiosa. ‘Eu li a notícia num jornal, que a moça foi atravessar a rua e morreu atropelada. Aí, eu fiz Iracema contando que ela foi atravessar a São João e o bonde veio na contramão. A notícia do jornal dizia que o acidente foi na Consolação. Foi o primeiro samba errado que eu fiz’, diz ele com malícia.
Adoniran teve reconhecimento tardio com,o compositor, nem sempre foi bem remunerado e por isso não podia perder chance de mandar recados para arrumar emprego. Isto explica porque ele transitou por várias áreas. Certa vez, em 1951, dando entrevista, achou brecha para lascar esta: ‘Pretendo ser mais astro no cinema que Robert Taylor. Só estou esperando uma chance. Com meus dotes físicos e morais, na dura que vou desbancar em breve o Anselmo Duarte’. Claro que não desbancou Anselmo, que era galã. As chances vinham, mas às vezes não vinham. Tinham de ser cutucadas, capturadas. E foi assim que Adoniran fez 14 filmes, começando em 1945 com Pif Paf, trabalhando até em chanchada com títulos ambíguos como Elas são do Baralho, de 1977. Afinal, tinha barriga. E, vazia, roncava.
Em 1978, ao saber que ia ser homenageado com tais e bleque tais, esclareceu sua opinião sobre honrarias: ‘Homenagem eu não quero. Quero tutu. Não tem tutu, não tem homenagem’. Bobo não era. Homenagem não enche barriga. O que não significava que fosse bajulador de crítico. Quando Trem das Onze estourou, Arnaldo, dos Demônios da Garoa, sugeriu fazer feijoada para os críticos, disc-jóqueis e discotecários que ajudaram a divulgar o samba. Não custava um agradinho, usando o dinheiro dos rendimentos da música no primeiro trimestre de execução. Arnaldo, único a chamar Adoniran de João, mandou comprar umas gravatinhas borboletas para dar para os caras. Adoniran mandou o seguinte recado: ‘Você pendura as gravatas no braço, sai vendendo por aí que feijoada num vai dá pra eu dar não, que eu não tô a fim de matá a fome de vagabundo nenhum’. O que pode parecer grosseria era autenticidade.
Durante um programa da TV Cultura, em dezembro de 1972, pediram para ele falar de sua mãe. Ele pensou e respondeu: ‘Não quero falar disso que eu vou chorar; não quero chorar’. Certa vez ele comprou frango para o almoço de domingo, chegou em casa, olhou o bicho e ficou com dó. Cinco anos depois o frango estava ainda lá, tinha virado um galo bonito e vistoso. Esta mistura de esperteza, ingenuidade e mordacidade aparecia em suas composições. Ele sabia o que fazia. Por isso dizia que falar errado era uma arte. A sua arte. Escolhida a dedo porque casava com seu tipo. O erudito podia resmungar, mas o povo se identificava.
Como muitos sambistas cariocas, Adoniran foi um cronista urbano de seu tempo e de sua cidade, São Paulo. No histórico O Fino da Bossa, numa noite de 1965, Elis Regina iniciou o programa dizendo que ia prestar uma homenagem a um grande artista: ‘A música que ele faz é muito boa’. E mandou Saudosa Maloca. Depois, chamou Adoniran no palco e perguntou quem era o autor. O sapeca sapecou: ‘Eu fiz comigo mesmo’. Adoniran morreu em novembro de 1982. Pobre como nasceu, mas continua vivo no coração de todo brasileiro que gosta de música e do paulistano que gosta de sua cidade. Deixou tipos e expressões como saudosa maloca, Iracema, Arnesto e um bando de gente boa que tirou das ruas da cidade para habitar o imaginário brasileiro. Adoniran só tinha um defeito: de família italiana, torcia para o Corinthians. O diacho é que corintiano acha que isto não passa de mais uma qualidade de Adoniran. Hoje ele está aí, com seus cem anos, mais consagrado que o comendador Matarazzo. Alhas, muito mais. E fica ansin.