Dia toca violão em seu apartamento, observada na janela do apartamento vizinho por Roy, escritor frustrado que se apaixona por ela. Até aí tudo bem, o melhor que pode acontecer na vida de um escritor frustrado é se apaixonar por uma bela dona – de preferência correspondido. O problema, no caso, é que o cara é casado com Sally, que tem queda por Greg, dono da galeria em que ela trabalha.

continua após a publicidade

Embora trabalhe, para viver com Roy, Sally precisa do dinheiro da mãe, Helena, que se enamora pelo dono de um sebo espírita, porque Alfie, o marido, um sessentão que percebendo não ter muito mais tempo de vida para se divertir, resolve malhar numa academia, para ficar em forma, e investir as raras energias e escasso vigor sexual – reforçado com comprimidos do tipo Viagra – nos derradeiros coitos extraconjugais. Para encarar o velho só na base da grana. Alfie sustenta Charmaine, uma prostituta. Todo mundo insatisfeito querendo se arranjar.

Esta é uma história tão maluca e neurótica que parece filme de Woody Allen. E é. O último, chamado Você vai conhecer o homem de seus sonhos (You Will Meet a Tall Dark Stranger, 2010), rodado em Londres. Com um time de primeira: Anthony Hopkins, Antonio Banderas, Naomi Watts, Gemma Jones e Freida Pinto, bela indiana de Bombaim, cujos antepassados eram portugueses. Ela lembra Camila Pitanga. Aos 74 anos e no 40.º filme, Allen mantém a pegada dos anos 70, quando produzia fitas divertidas e neuróticas para dar o recado de que a vida é um tremendo vazio em que cada um fica o tempo todo tentando preencher com o que acha melhor. Ainda que a maioria disfarce, aposta naquele sentimento difuso chamado amor. Ou, por falta de coisa melhor, uma breve e incandescente paixão. Há os que preferem droga, álcool e religião. Na maioria dos casos, a procura vira atalho para decepções. O sujeito se arrebenta,
mas na frente começa de novo. Afinal, nas não existe nada melhor que continuar tentando. Até a luz apagar.

Allen talvez seja o cineasta em atividade mais fiel às origens, depois de uma febre estranha em que tentou ser o Ingmar Bergman de Nova York, seguida de uma menos letal e até interessante em que andou fazendo filmes ‘elaborados’, como Zelig (Zelig, 1983) e A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo, 1985). O certo é que desde o começo, seu negócio foram os filmes em que as pessoas tentam se dar bem, amando, naturalmente, no interior do labirinto chamado vida, criando situações embaraçosas, cômicas e frustrantes, entremeadas com algumas doses de sexo e contemplação de alguma obra de arte. Claro, sem abrir mão de tiradas filosóficas que, resumidas, levam à conclusão de que a vida é um pastel frio recheado de tédio e indagações.

continua após a publicidade

No filme anterior, de 2009, Tudo pode dar Certo (Whatever Works), Allen está de novo em Manhattan com um personagem chamado Boris Yelnikoff, de meia idade, físico que quase ganhou o Prêmio Nobel, mas como o quase atrapalhou, ele não ganhou. O sujeito acha que é melhor que todo mundo, mas não consegue viver legal. É hipocondríaco, tentou suicídio, não conseguiu, ficou aleijado, separou da mulher e passa o tempo com os amigos maldizendo o resto do mundo.

Não é preciso ir a Manhattan para conhecer o tipo. Como nos filmes de Allen acontecem coisas que só acontecem em seus filmes, uma mocinha do Mississipi chamada Melody surge do nada para botar um pouco de música na vida do cara. Aí a coisa vira um Fla-Flu entre um sujeito erudito que gosta de Beethoven e mecânica quântica com uma garota bonita, jovem, inculta. E temos de novo alguém em busca de alguma coisa que pode ser, talvez, alguns momentos de felicidade. Você já viu este filme? Se assistiu Noivo Neurótico,Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977) e Manhattan (1979), entre outros, é quase a mesma coisa. Mas o divertido em Allen é isto. Não é a mesma coisa. O quase, na vida, pode mudar muito. É como o amor. O novo é sempre diferente e melhor enquanto dura.

continua após a publicidade

Assim é com Você vai conhecer o homem de seus sonhos e já foi com Todos dizem eu te amo (Everyone Says I Love You, 1996). O certo é que tem mais um novo filme de Allen na parada. É um dos poucos sujeitos que faz alguém que gosta de filmes inteligentes e sensíveis sair de casa para ir ao cinema. E, melhor,, o cineasta parece recuperar o frescor da juventude e mostra fôlego surpreendente. Desde o divertido A última noite de Boris Grushenko (Love and Death, 1975), Allen mantém a média superior a um filme por ano. Se 1981 aparece em branco na sua filmografia, em compensação 1987 aparece com três e 1989 e 1992 aparecem com dois filmes cada. No caso dele e de qualquer cineasta que se preze, não é a quantidade, mas qualidade que conta. Allen mantém a pegada.

O fato de Allen continuar fazendo filmes numa época em que são caros e o retorno financeiro dos seus não passa do razoável, quando não enfrenta a fronteira do déficit, é um verdadeiro milagre. Um milagre que ele produz mediante alguns truques. A maioria alivia a coluna de gastos. Um deles são os atores. Ganham mixaria, mas adoram trabalhar com o diretor, porque isto dá prestígio danado. Júlia Roberts se deu ao luxo de receber US$ 5 mil, enquanto que, com outros
diretores, seu patamar é de dois dígitos. Em milhões. De dólares.

Allen é daqueles poucos diretores cujos nomes no currículo significam mais que cursos de pós-graduação. É sinal que se está diante de um ator e não astro, de uma atriz e não estrela. Para ganhar dinheiro existe pelo menos uma centena de outros diretores, para ganhar este prestígio, de poucos. Além disso, as filmagens são rápidas. Hopkins e Banderas não precisam disso, mas é a velha história: nunca é demais aumentar o prestígio na área. Além de fazer bem para o ego dizer algo como ‘meu último filme foi com Woody Allen’.

Outro esquema de Allen para conseguir fazer seus filmes é sair de Nova York. A vida na Big Apple está pelos olhos da cara e algumas prefeituras como as de Barcelona, Paris, Madri, Paris, Londres, além de não complicarem, ajudam no apoio logístico. Tudo isso evitar gastar grana. Outro truque aplicado no último filme está na música. Recorrer a composições dos anos 30 é chique, mas a grana da trilha sonora não sai do banco, se é que ela está na conta. Elas viraram domínio público. E assim vai. Tirando coelhos da cartola Woody Allen vai envelhecendo fazendo o que fez nos últimos 45 anos, quando podia parar numa esquina de Nova York, ajeitar os óculos com lentes de fundo de garrafa, arrumar pose de conquistador desastrado e perguntar: ‘What’s New, Pussycat?’.

As suas grandes dúvidas não mudaram, porque os homens e a realidade continuam travando a velha batalha: eles querem ser felizes, mas ela não dá mole.