Para começar a falar sobre Expresso do Amanhã, é preciso mencionar antes os irmãos Weinstein, e não para falar bem. Produtores e distribuidores, eles se encarregaram da distribuição do novo filme de Bong Joon-ho. Implicaram com a duração e exigiram do diretor sul-coreano que cortasse 20 minutos. Joon-ho não cedeu. Na quebra de braço, o filme teria permanecido para sempre inédito, se não fosse uma campanha na internet. Todo esse processo tomou dois anos. Você poderia e até deveria ter visto Expresso do Amanhã em 2013. É o que teria ocorrido se fosse um filme de Quentin Tarantino, o queridinho dos Weinstein, o único a fazer os filmes que eles gostam, do jeito que gostam (e, vale destacar, nós, o público, também).

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Antes tarde do que nunca. Joon-ho tornou-se conhecido com filmes como O Hospedeiro e Mother – A Busca da Verdade, que recorrem aos gêneros para tratar de família. Era fatal que seu domínio da ação, e dos efeitos, o levasse a Hollywood. Há dois anos, uma referência inevitável para seu filme teria sido Expresso para o Inferno, que o russo Andrei Konchalovski realizou nos EUA, com base num roteiro de Akira Kurosawa.

Expresso do Amanhã passa-se num trem que não pode parar. Não exatamente um trem do inferno, ou para o inferno, justamente porque a paisagem é gelada (mas também já era no de Konchalovski). Na devastada Terra do futuro, um experimento fracassado criou a era glacial – esqueça O Dia Depois de Amanhã, de Roland Emmerich (o filme de Joon-ho é muito melhor). Sobraram apenas esse trem e seus passageiros, mas, atenção – o trem autossustentável é uma representação do sistema socioeconômico. Curto e grosso – a boa e velha luta de classes do marxismo, que os ideólogos da globalização tentam nos fazer crer que morreu com a queda da URSS, segue na ordem do dia.

No trem de Bong Joon-ho – o filme baseia-se numa graphic novel francesa, Le Tranperceneige, publicada no Brasil como O Perfura-neve -, há uma nítida divisão de classes. Os ricos e poderosos habitam a parte da frente e, na rabeira, estão alojados os pobres. O trem é como uma cidade. Os vagões dos ricos são visualmente assépticos, mas possuem todo conforto e até opções de lazer. Os dos pobres assemelham-se a uma favela.

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Mas é dessa rabeira que avança um grupo liderado por Chris Evans – sim, o

Capitão América, num papel sem o glamour do super-herói. Ele aparece sujo e barbado, mas avança com seu grupo, em busca de duas crianças que foram separadas da mãe, Octavia Spencer. A família, sempre. Essas crianças agora estudam no vagão-escola. Bem nutridas e asseadas, não são reconhecidas pela mãe nem pelo grupo, o que é bem interessante. Uma guerra – uma revolução? – está sendo feito por elas, mas será mesmo por elas?

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Expresso para o Inferno, portanto, mas este ano é muito provável que o cinéfilo relacione Expresso do Amanhã, com mais propriedade, ao operístico, e também apocalíptico, Mad Max – Estrada da Fúria, de George Miller. Em ambos, há um comboio que segue em frente – e no filme de Miller faz uma curva e volta ao ponto de partida, fechando um ciclo com a deposição do ditador desse mundo futuro. A grande diferença é que uma mulher, Furiosa/Charlize Theron, é a heroína protofeminista do novo Mad Max e, em Expresso do Amanhã, o herói é Chris Evans, mesmo distante da caracterização do Capitão América. Mas são filmes muito interessantes, e aparentados, apesar das diferenças.

George Miller investe na forma audiovisual. Bong Joon-ho também não descuida do visual. Há um elaborado trabalho de cor – branco e preto na parte dos ricos; cinza e marrom na dos pobres. Mas o que os aparenta, de verdade, é uma certa forma de trabalhar o exagero. Joon-ho carrega na sátira. A personagem da poderosa Tilda Swinton – a líder dos ricos – é quase uma caricatura, mas nunca saberemos se já era assim na versão longa do diretor, ou se ficou sendo na abreviada dos irmãos Weinstein.

O importante é que a arquitetura dramática converge para um final explosivo, e redentor, com direito a discurso de Chris Evans – veja e preste atenção no que ele diz. Pode ser que a versão do diretor fosse melhor ainda, mas Expresso do Amanhã, tal como está, não decepciona. Aos 45 anos, Joon-ho já provou que é um autor – de um cinema autoral também feito de diálogo com o público e que dinamita, desde o interior, regras de gênero. É o que volta a ocorrer em Expresso do Amanhã.

Ação, humor, fantasia (fábula), suspense, muita violência e uma vontade de denunciar a passividade que, de um lado e de outro, leva a maioria das pessoas a se anular num coletivo que é muito mais um sentimento de manada. Curiosa premissa. Um filme de ação em defesa do pensamento. Quem quiser colocar o filme num nicho terá dificuldade. Sua riqueza, a própria potência estilística, vem dessa diversidade. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.