Os olhos de Marcela estão na ponta de seus dedos finos e delicados. Eles começam a tatear uma figura lentamente, buscando o que podem para criar a imagem representada na foto. Seguem cada traço com delicadeza, escorregando pelo alto-relevo, sentindo círculos, retas e ondulações. Não é um caminho fácil. Sem visão desde o nascimento prematuro, há 32 anos, Marcela não tem nenhum banco de memória visual que possa orientá-la. Assim, nem sempre adianta tatear aquilo que seus olhos nunca viram. Antes que desistam de andar por um terreno tão desconhecido, Marcela encontra as depressões de linhas retas paralelas e fica nelas por um tempo. “Opa”, diz. A sala fica em silêncio. Quando reconhece algo, ela sorri: “Um piano”.
Marcela Trevisani, professora e pianista, sabe bem as formas do instrumento que “vê” na imagem exposta no MIS. Ela foi a primeira pessoa de quem o fotógrafo Gabriel Bonfim se lembrou assim que teve a ideia de fazer os cegos sentirem as formas de suas imagens. A técnica que criou e patenteou se chama tactografia, uma espécie de impressão em alto-relevo, que escaneia o objeto fotografado e mapeia proporções e profundidades. Sua coleção de imagens tactográficas, 24 ao todo, estarão na exposição De Fotografia à Tactografia, a partir desta quarta-feira, 12, até o dia 22, no Museu da Imagem e do Som (MIS).
A vida dá uma longa volta até fazer Gabriel e Marcela se reencontrarem na tarde de segunda-feira, 10, quando a reportagem esteve na montagem da exposição. Há dez anos, eles eram amigos de sala na Escola Estadual Oswaldo Aranha, em São Paulo. Marcela, no mundo sem imagens, era uma exceção muitas vezes desconfortável a alunos e professores. “Agora, desenhem uma pizza”, pedia a mestra. Marcela não tinha informação visual para representar a pizza. “Se algum objeto tiver muitos detalhes, não consigo reconhecer.” Então, enquanto os amigos desenhavam, ela escrevia uma crônica sobre o tema. “No início, quando você é a novidade na sala, as pessoas se preocupam e ajudam. Depois, quando sua presença vira algo normal, eles tendem a se afastar. Apenas alguns ficam ao nosso lado.”
Gabriel Bonfim ficou. Apenas ele e outra amiga de Marcela, Tayla Andrezza. Mais tarde, em 2014, quando Gabriel fotografava o cantor cego Andrea Bocelli atendendo a um convite do próprio durante uma temporada na Turquia, sentiu o passado encontrar o presente. Era como se Marcela e Bocelli dissessem a ele que fizesse algo com o talento que o tornou um fotógrafo reconhecido no mundo aos 26 anos. Gabriel, lembrando da luta da amiga, criou a tactografia, ergueu sua exposição em São Paulo e chamou Marcela para a inauguração. O laço que fecharia a história ainda é uma incógnita: ter Bocelli como visitante convidado na exposição, com Marcela tocando para ele. Coincidentemente ou não, Bocelli está no Brasil para dois shows, hoje e amanhã, no Allianz Parque.
A mostra de Gabriel tem a curadoria do suíço Thomas Kurer. Ele resolveu dividir a exposição em três séries. Duas são dedicadas ao tenor italiano Bocelli e uma terceira é sobre o jovem bailarino catarinense Denis Vieira, ex-integrante do Ballet da Ópera de Zurique e atual solista no Ballet de Berlim. Cada série traz 12 imagens tridimensionais.
“Nossa experiência com testes realizados em escolas de deficientes visuais de Zurique mostra que uma pessoa cega, com alguma prática, pode aprender a ler e a ver uma tactografia rapidamente”, diz Gabriel em um material de divulgação da mostra. Aos videntes, aqueles que enxergam, as imagens aparecem apenas na cor branca. Aos cegos, elas podem ter mil significados.
DE FOTOGRAFIA À TACTOGRAFIA MIS. Av. Europa, 158, tel.: 2117-4777. 3ª a sáb., 12h às 21h; dom. e fer., 11h às 20h. Abertura hoje. Grátis
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.