No recém-lançado livro Paris, Capital da Modernidade (Boitempo Editorial), o geógrafo britânico David Harvey diz que “um dos mitos da modernidade é que ela constitui uma ruptura radical com o passado”. Harvey usa a palavra mito justamente por não acreditar nessa ruptura. Em outras palavras, a ideia de Paris como capital da modernidade já estava embutida no projeto de demolição da cidade pelo urbanista e barão Georges-Eugène Hausmann, que, apesar disso, não rompe radicalmente com o passado parisiense. Quando se pensa na temporada que o pintor brasileiro Candido Portinari (1903-1962) passou em Paris, entre 1929 a 1931, fica mais fácil entender a natureza binária de sua pintura, ou melhor, o conflito entre sua vocação acadêmica e o espírito que o empurrou para a modernidade. A reverência aos mestres, antigos e modernos, o paralisou – a ponto de deixar a pintura de lado para visitar museus e galerias parisienses – até voltar ao Brasil, em 1931, já contaminado pela modernidade. Isso fica claro na exposição Portinari e a Poética da Modernidade Brasileira, que a Galeria Almeida & Dale abre na quinta, 18.

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Não por outra razão, lembra Denise Mattar, curadora da mostra, que reúne 35 telas raras de Portinari, o escritor Mário de Andrade ficou deslumbrado com as pinturas que o artista de Brodósqui exibiu no salão organizado em 1931 pelo urbanista Lúcio Costa, então diretor da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Portinari compareceu com 17 obras, entre elas o retrato do poeta Manuel Bandeira e a tela O Violinista, que Mário classificou de “admirável”. Desapontado com outros modernistas do salão (incluindo Tarsila do Amaral), o autor de Macunaíma criticaria, dois anos mais tarde, o “diletantismo estético, tipicamente burguês, em que persistimos”. A partir daquele momento, os modernistas assumem a crítica e passam a se ocupar dos problemas sociais. Portinari, em 1934, pinta sua primeira tela com essa temática. Muitos anos mais tarde, Mário chamaria o pintor de “escudo da causa do modernismo contra o academismo”.

Isso não encerrou a discussão que colocou Portinari num movimento pendular entre sua brasilidade sincera e a ligação umbilical com a pintura italiana – afinal, tratava-se de um descendente de camponeses vindos da Itália, que se estabeleceram numa fazenda de café perto de Brodósqui. O próprio Portinari, a respeito, dizia que, apesar de ter o sangue da gente de Florença, sentia-se como um caipira. Esse conflito teria provocado, segundo a crítica, uma certa incoerência de estilo que colocaria em dúvida a modernidade de Portinari – o que seu amigo e biógrafo Antonio Callado considerava uma bobagem. Para ele, não havia conflito entre o conservador clássico e o inovador moderno. Era da natureza dual de Portinari essa oscilação.

Também por isso a curadora da mostra escolheu 1931 como o ponto de partida da exposição, que vai até 1944, ano da Exposição de Arte Moderna de Belo Horizonte e da ascensão internacional do pintor – ele ganha uma individual em Washington e a revista Time reproduz na capa sua tela Morro, hoje no acervo do MOMA. Da mesma década, a mostra paulistana traz pinturas em que Portinari revela igual intenção de se dedicar aos despossuídos, pintando cenas dos morros cariocas e reminiscências do meio rural de Brodósqui, especialmente crianças empinando pipas, além de espantalhos, enterros e carcaças de animais. Um quadros da época é a pintura As Moças de Arcozelo (1940), lírica obra expressionista com três moças em roupas domingueiras sentadas à beira da estrada. A paisagem de Arcozelo, cidade fluminense, é apenas sugerida em leves traços, destacando-se à esquerda um baú de folha de flandres pintado de azul. Mas a grande surpresa para o visitante é o óleo sobre madeira Flora e Fauna Brasileira (1934), ano em que Portinari defende que a pintura moderna “tende francamente para a pintura mural”, como a dos mexicanos. Essa é a prova mais evidente. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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