Ao morrer, aos 93 anos, em 1996, o fotógrafo e etnógrafo franco-brasileiro Pierre Verger deixou para a fundação que leva seu nome, em Salvador, mais de 60 mil imagens de todos os lugares do mundo por onde passou, das ilhas da Polinésia francesa ao continente chinês, passando por vários países africanos e sul-americanos. Muitas culturas, hoje extintas, sobrevivem apenas nessas fotos, registradas com uma antiga câmera Rolleiflex, que exigia do fotógrafo um olhar seletivo, econômico – era possível apenas fazer seis fotos por vez.

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Milhares de negativos e cópias em papel, que sofreram a ação do tempo, apesar dos cuidados do fotógrafo, foram recuperados pela Fundação Pierre Verger, que lança nesta quinta, 1º, o livro Memórias de Pierre Verger (R$ 50, no lançamento), breve história da instituição. O livro marca a abertura da exposição As Aventuras de Pierre Verger, no Museu Afro Brasil, com 176 fotos – a maioria feita entre os anos 1930 e 1950, período mais intenso de sua produção.

O título da mostra é uma brincadeira com o da série criada em 1929 pelo desenhista belga Hergé (1907-1983), As Aventuras de Tintim, em que ilustra as aventuras de um jovem repórter belga (Tintim) e sua cadela Milu pelo mundo. Ao contrário do racismo de Hergé, explícito em histórias como Tintim no Congo, Verger era o anticolonialista por excelência, reverente à cultura africana e, principalmente, não estava a serviço de nenhum governo quando decidiu trocar o conforto burguês da vida parisiense pela vida de nômade em lugares remotos, sejam ilhas ou desertos. Até por isso, o curador da mostra, Alex Baradel, considerou oportuno aproximar Verger de Hergé, fazendo das fotos um contraponto do discurso xenófobo embutido em Tintim, expostas ao lado das ilustrações do belga na mostra.

Hergé, observa o curador, não era um globetrotter como Verger. É possível, então, que tenha adotado como referência fotos dele para seus quadrinhos, publicadas em revistas e jornais franceses, como sugere a montagem da mostra. Antes, porém, de se tornar um fotógrafo disputado por publicações, Verger enfrentou um rito de passagem marcante. Filho de uma rica família parisiense, Verger perdeu pai, mãe e irmãos muito cedo. No fim dos anos 1920, sua família alternativa eram artistas e boêmios franceses como Pierre Boucher (que ensinou fotografia a Verger) e o suíço Eugène Huni, pintor com o qual partiu para a Polinésia francesa em 1933, atrás do paraíso utópico pintado por Gauguin em suas telas. Huni, mais forte, de corpo atlético e capaz de enfrentar tempestades, ficou. Verger, mais frágil, voltou a Paris, mas levou consigo a imagem do amigo, seminu como um nativo – o fotógrafo, homossexual, sentia atração por tipos como Huni.

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No ano de seu retorno, 1934, uma agência fotográfica, Alliance Photo, foi criada em Paris e, simultaneamente, Verger expôs suas fotos no Musée de l’Homme, sendo contratado pelo jornal Paris Soir para fazer uma volta ao mundo. Algumas dessas fotos estão em exposição no Museu Afro Brasil. São imagens curiosas, de nativos olhando papoas (estrangeiros brancos) como os franceses olhavam os “exóticos” antípodas, mas nada tão forte como na sala seguinte, que mostra a Argélia colonizada pelos franceses. Ainda assim, não são frios registros jornalísticos. “Eram imagens publicadas tanto pela imprensa colonialista como por revistas sem vínculo ideológico”, observa o curador. “Notável em Verger era sua capacidade de se aproximar de pessoas desconhecidas sem desconfiança, estabelecendo uma cumplicidade imediata, eu diria até mesmo uma certa intimidade.”

O diretor do Museu Afro Brasil, Emanoel Araújo, atribui essa força de atração ao “olhar interior” de Verger, que frequentava a casa do escultor na Bahia. “Verger não tinha esse ‘olhar de fora’, não era o estrangeiro, mas alguém que se transformou num ancestral e voltou à terra como um espírito silencioso”, define Araújo. De fato, tão identificado era Verger com a cultura africana que, iniciado no candomblé, se transformou num babalaô branco. Ao contrário de seu contemporâneo Cartier-Bresson, não acreditava em instantâneos, mas numa relação pessoal que extrapola o tempo para ser eternizada por meio da foto.

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É tão verdade que a fotografia de Verger passa pelo inconsciente que todas as imagens feitas na África revelam uma reverência nunca vista entre fotógrafo e modelo. Exemplo disso são as fotos feitas no Benin, em 1936 – particularmente, uma, em Niger, do mesmo ano, que mostra um jovem africano flagrado de frente por Verger (ajoelhado) que posiciona sua câmera em contraplongée para transformá-lo num deus, sem pensar em enquadramento, apenas eclipsando sua figura de fotógrafo. Esse interesse pelos nativos se acentua durante sua temporada andina – o curador da mostra revela que ele sabia reconhecer uma tribo só pelo poncho que usava. As fotos do Peru e da Bolívia formam um capítulo à parte na exposição, que culmina com as pesquisas sobre as semelhanças existentes entre as culturas brasileira e africana, separadas pelo Atlântico, mas não espiritualmente.

“Pensamos nessa exposição como uma introdução à fotografia de Verger para o público infantojuvenil”, diz o diretor jurídico da Fundação Pierre Verger, Emerson Almeida Cabral, que preparou jogos interativos para crianças e uma “cartilha” sobre as viagens do fotógrafo pelo mundo. “O extraordinário é que ele abdicou de tudo, deixando seu lado cartesiano na França para viver de forma sacerdotal e com simplicidade na Bahia”, conclui Emanoel Araújo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.