É raro, mas duas grandes mostras de cinema italiano contemporâneo iniciam-se quase simultaneamente neste início de semana na cidade. A 10ª Mostra de Cinema Italiano, apadrinhada pela Barilla, começa hoje no Museu da Imagem e do Som (MIS), que, desde a semana passada, abriga uma exposição de fotos de grandes diretores da Itália, além de ter sido o foro da minirretrospectiva com seis filmes do homenageado pelo evento, o cineasta Pietro Germi. Como destaque especial, a 10ª Mostra traz a São Paulo Maria Grazia Cucinotta, a musa de O Carteiro e o Poeta, com Massimo Troisi, que vem para a abertura, com La Moglie del Sarto/A Mulher do Alfaiate, que fez com direção de Massimo Scaglione.

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A outra mostra chama-se Filmcup Brasil & Itália e, segundo os organizadores, visa a estimular acordos de coprodução. O homenageado é um dos grandes do cinema, não apenas italiano – Ettore Scola. Ele não vem, mas conversou pelo telefone com o repórter do jornal O Estado de S. Paulo. O tema – a versão restaurada de Um Dia Muito Especial, seu clássico com Sophia Loren e Marcello Mastroianni, que já teve direito a gala no recente Festival de Veneza. Ambas as mostras, por sinal, estão trazendo atrações premiadas no Lido.

Quase 40 anos depois (o filme é de 1977), Una Giornata Particolare volta, e aclamado como clássico. O que isso representa para o senhor?

Tive o privilégio de fazer filmes aclamados pelo público e pela crítica, mas com Um Dia Muito Especial sempre houve algo que foi ‘particolare’, e desde a primeira hora. Para mim, o mais importante é ver o filme recuperar o brilho do tratamento visual original, que foi se perdendo com o tempo. Trabalhei com um fotógrafo excepcional, Pasqualino de Santis. Na época, a Technicolor nos advertia que o que queríamos lograr era muito difícil e poderia sofrer o desgate do tempo. No meu imaginário, Um Dia Muito Especial deveria ser um filme preto e branco em cores. Tinha na época, tenho hoje mais ainda, aos 83 anos, lembranças esmaecidas do fascismo. Cada vez mais, me lembro do período como soturno, em ‘bianco e nero’. O filme já tinha essa vontade de rever aquele mundo como sépia, de forma crítica.

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O senhor gosta de dizer que existe uma ‘vicenda’ italiana – um caso italiano. Que, em nenhum outro país, o cinema reflete tanto a história. Um Dia Muito Especial é significativo, mas poderia explicar? Que caso italiano é esse?

Tivemos o fascismo, como a Alemanha teve o nazismo, mas foi na Itália que se desenvolveu o neorrealismo. Críticos e historiadores têm dissecado esse desejo de realidade que fez com que o cinema italiano expressasse o sonho de reerguimento humano e moral e que afligiu o povo italiano após a derrocada na guerra. Tivemos o ciclo dos telefones brancos, o neorrealismo, as comédias, que foram suas herdeiras. Cada um desses ciclos revela o país de uma forma como não se encontra em nenhuma outra cinematografia. Talvez os americanos, mas Hollywood usou o cinema para dotar o país de uma identidade, para transformar os EUA em nação. A França produziu grandes comédias, mas elas não se encaixam na tradição realista e humanista do cinema italiano. La ‘vicenda’ italiana, para mim, é isso – comprometimento com a História nacional, um pacto para a reconstrução das pessoas como da sociedade. E isso se sente em Um Dia Muito Especial, na maneira de olhar aquelas pessoas – a dona de casa e o homossexual, ambos à margem da celebração machista do fascismo.

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Esse é muito um sonho de esquerda, mas o mundo tomou outro rumo. A Itália produziu (Sílvio) Berlusconi, outro ‘buffone’ na vertente de Mussolini. Como vê o mundo atual?

Continuo sonhando. Fiz um dos episódios de Un Alto Mondo È Possibile porque creio nisso. Nesse século 21, a humanidade atingiu um desenvolvimento tecnológico extraordinário, mas o desenvolvimento humano ficou para trás. Há muita exclusão e esse sistema baseado na desigualdade favorece a corrupção. O cinema que fiz, o cinema que me interessa, deve ser crítico dessa ‘desumanità’ vergonhosa.

O senhor disse que tinha parado com o cinema, mas fez Que Estranho Chamar-se Federico…

…Mas é porque era ele, Federico Fellini. Queria homenageá-lo e saudar nossa amizade. Tenho ideias, mas hoje faço os filmes na minha cabeça, sem necessidade de passá-los pela câmera.

De volta a Um Dia Muito Especial, o filme é grande, mas sua aura passa muito pelos atores, Marcello e Sophia. Como os escolheu?

Marcello já estava na minha cabeça enquanto escrevia o roteiro. Ele tinha a fama de sedutor, mas era um ser feminino. Conseguia exprimir seus sentimentos sem perder a virilidade. E, de todos os atores com quem trabalhei, era o que menos se lixava para sua imagem. Ele sabia que tudo podia fazer, ousar, e por isso foi grande. Por isso, lhe deu o papel de homossexual nesse filme, e fiz dele o velho Casanova decadente de La Nuit de Varennes/Casanova e a Revolução. Sophia era uma estrela. Tinha o seu entourage. Cabeleireiro, maquiadora. Mas era uma mulher inteligente. Com (Vittorio) De Sica, ela já deixara tudo isso de lado para fazer, e fazer bem, mulheres do povo. De cara, ela percebeu que teria de se abrir mão do glamour para ser Antonieta (a dona de casa). Ao se desglamourizar, e sem perder a beleza, ela já era a personagem.

Preciso lhe confessar uma coisa – amo Um Dia Muito Especial e Nós Que nos Amávamos Tanto, mas seu filme que prefiro é A Viagem do Capitão Tornado. Que lembrança tem?

Fiz muitos filmes que dilataram o tempo num só cenário. Num apartamento, num terraço, num salão de baile. Sempre quis fazer um filme de estrada, e Capitan Fracassa/Capitão Tornado me permitiu isso. Foi a minha Carroça de Ouro. Um filme sobre a arte da representação, o artifício. Embora de estrada, foi feito em estúdio, em Cinecittà. Eu também amo Capitão Tornado.

O senhor voltou a filmar no apartamento de Um Dia Muito Especial…

Sim, Via XXI Aprile. Fiz O Romance de Um Jovem Pobre. Depois, ele foi comprado, se não me engano, por brasileiros (E como tal apareceu no documentário Repare Bem, de Matria de Medeiros).

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.