São poucos os artistas que passam pelo mundo sem se enquadrar a um gênero, sem pertencer a uma turma, sem participar de um movimento e sem fazer questão alguma de estar em qualquer um desses coletivos criados pelo instinto de sobrevivência dos músicos a partir do final dos anos 1950, com o surgimento da bossa nova, e pelo tino mercantilista das companhias de disco, que precisavam nortear o pensamento de seus consumidores.

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A existência artística de Walter Rosciano Franco foi, assim, um milagre que durou até a madrugada desta quinta-feira, dia 24, quando ele não resistiu mais aos prejuízos provocados por um AVC. Walter estava com um disco pronto, feito com o filho Diogo Franco. Um álbum com músicas inéditas de título que remete aos jogos verbais que tanto marcaram seus maiores trabalhos: LISTEN – ResiLIência e ResiSTÊNcia. Ele tinha 74 anos e estava internado havia um mês.

A complexidade do pensamento de Walter Franco foi um desafio mesmo aos tempos de maiores liberdades poéticas e musicais, antes que as gravadoras fossem compradas por conglomerados que entendiam mais de cinema, lâmpadas e aparelhos domésticos do que de música. Os anos 1970 produziram alguns poucos pares que, como Jards Macalé e Jorge Mautner – que o mercado chamava de malditos por não ter onde enfiá-los – seriam colocados a seu lado. Com uma liberdade de conseguir dizer o que queria usando poucas palavras e extraindo novos significados de suas repetições, algo que o meio literário já tinha como “concretismo”, Franco fez sua história particular com uma discografia breve e marcante. Depois de lançar um compacto simples chamado Tema de Hospital, em 1971, evoluiu rapidamente para um álbum radicalmente experimental, Ou Não, em 1973, influenciando Caetano Veloso, que faria Araçá Azul de uma de suas costelas. Dois discos que se tornaram um fracasso de vendas e que só puderam ser lançados naquele momento.

Apesar de pouca gente entender, Ou Não deu relevância a Walter no meio mais intelectualizado entre os roqueiros. Quando viesse 1976, seu movimento seria outro, ainda que no campo das vivências fora dos padrões, para lançar o mais assobiável Revolver, considerado por muitos o seu melhor disco. É dele que saiu, por exemplo, Feito Gente, regravada por Wanderléa. Respire Fundo, de 1978, trazia diálogos sonoros com Sivuca, Lulu Santos, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Vinicius Cantuária. É deste disco um outro de seus poucos hits, a música Coração Tranquilo, em que canta “tudo é uma questão de manter / a mente quieta, a espinha ereta / e o coração tranquilo”, sua mais famosa frase.

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Walter Franco veio de uma família ligada à arte. Seu pai era poeta, professor de português e radialista; a mãe era pianista. Sua descrição da primeira vez em que ouviu Elvis Presley, foi dada a Charles Gavin no programa O Som do Vinil: “Eu nunca soube explicar a sensação. Era transcendental.” Franco era, em suma, um roqueiro que criava fora da caixa dos padrões do rock. “Está tudo na plataforma do ar”, ele dizia, reproduzindo uma frase de Luiz Melodia.
O impacto que Ou Não não teve no público comprador de disco existiria entre os poetas concretos. Ao ouvirem sua música, os irmãos Campos, Augusto e Haroldo, se juntaram a Décio Pignatari e convidaram Franco para um encontro na casa de Tom Zé. Ao chegar, ele foi logo sendo inquirido: “Mas o que é que você ouve para fazer músicas assim? John Cage?” E ele respondeu: “Nunca ouvi isso, só uso o caminho da intuição mesmo.”

Depois de ver os pais sendo perseguidos pela ditadura, o próprio Franco seria um alvo durante sua atuação em festivais universitários. Chegou a ser levado por agentes do Dops por sua mania de falar e cantar demais. Ao chegar às dependências da delegacia, a primeira pergunta foi: “Quantos você já matou?” Era uma tentativa de intimidação, que não deu muito certo: “Entre percevejos, pulgas e baratas, não passam de meia dúzia.”

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Anos depois, seria também um festival, dessa vez maior, que o projetaria. Walter Franco mostrou Cabeça no Festival Internacional da Canção, de 1972, da Rede Globo. Se tratava de uma música fragmentada com vozes sobrepostas, da suavidade ao berro, com momentos de incompreensão verbal e outras estranhezas que, aos poucos, foram arrebatando admiradores. Houve confusão no final da disputa: o público queria Fio Maravilha, de Jorge Ben, e o júri queria Cabeça. Mas Nara Leão deu entrevista falando mal dos militares e, segundo a organização, os jurados tiveram de ser destituídos depois disso. Uma ala forte acredita até hoje que tudo foi feito para que Cabeça não vencesse.

Não importou muito. “Isso é uma revolução”, disse Astor Piazzola, acostumado a enfrentar os conservadores do tango argentino, ao ouvir a música de Walter. A gravadora Continental resolveu contratá-lo depois de sua passagem pelo festival e ele, com moral, escolheu o maestro Rogério Duprat, delineador da linguagem tropicalista, para assumir os arranjos de Ou Não, o que viria a ser, segundo o crítico Tárik de Souza, “um dos projetos mais ousados de nossa música popular, inclusive em nível de vanguarda internacional.”

Assustadoramente suave e grandiloquentemente minimalista, Walter Franco fez a festa com pouquíssimas palavras. Assim, seu negócio não era o texto corrido, mas sim as células dele, e os significados eram refeitos pela simples repetição de palavras ou ainda pela separação de suas sílabas, desaguando em partículas revolucionárias que servem como luva para fechar seu obituário: “Eternamente / É ter na mente / Éter na mente / E, ternamente / Eternamente.”