Minha mãe faleceu aos 92 anos. Enquanto eu voava ela tinha certeza, essa certeza das mães, que nada iria ocorrer com os aviões que eu pilotava. Claro que algumas coisas se passaram mas nunca contei a ela. Dessa forma, ela se mantinha tranqüila quanto à minha segurança e sobrevivência.

Um dia, por fastio, enjôo e desencanto, deixei de voar. A única alternativa que me apareceu foi a de me voltar para o jornalismo, coisa que andara bosquejando quando estudante, em Sorocaba.

Sempre tive o cuidado de não deixar minha mãe saber o que andava fazendo. Não gostaria que ela se preocupasse com o meu futuro, trabalho, família e tal. Até seu falecimento escondi de minha mãe que era jornalista.

Ela se foi, tranqüila e em paz, sabendo que eu vivia feliz, ganhava bem, sustentava os filhos exercendo a digna profissão de garçon de puteiro na rua Bittencourt, no porto de Santos. Tenho comigo que se ela soubesse que era jornalista iria se preocupar, perder noites de sono, ficar doente, ia ser muito triste.

Muito cedo descobri que qualquer cristão pode virar jornalista, escrever para jornais e revistas e tal.

Eu nunca soube que um jornalista entrasse no centro cirúrgico de um hospital e dissesse ao médico que aquela incisão para laparatomia exploratória deveria ser na horizontal e não na vertical, como ele estava fazendo. Bem assim, jamais tive conhecimento de que um jornalista falasse a um magistrado que o Inciso B, do Art. 16 não interpretava com justiça o caso em pauta. Por outro lado, nunca tive conhecimento de que algum jornalista opinasse para um engenheiro sobre a estrutura daquela ponte entre as margens do rio ou, para um arquiteto, que sua criatividade estava superada e demodée. A um odontólogo nunca um jornalista disse que o problema buco-maxilar era de simples articulação e não dependia de cirurgia.

No entanto, todos escrevem e publicam, de graça. Invadem com olímpica desfaçatez a seara do profissional, pespegando artigos e artiguetes com o caradurismo dos inocentes, só prá vêr o nome em letra de forma. Lêem e babam em cima dos próprios textos publicados, imaginando a repercussão universal de seus princípios e conceitos. Acabam virando heróis distritais do jornalismo. Essa profissão é como pia-de-água benta: todo mundo põe a mão.

Hoje, o jornalista convive com um ranço ditatorial: a obrigatoriedade de diploma de curso superior, com o devido registro no Ministério do Trabalho. Era o jeito da madeira: cassavam o registro e, assim, calavam a boca do jornalista. Até hoje.

E é por isso que, ainda prevalece o conceito de que um jornalista pode ser formado em faculdade, assim como um médico, advogado, engenheiro e tal. A inconsútil leveza do pensamento criativo, a intelectualidade em evolução, o fato de um formando registrado no Ministério vir a se transformar num craque ou num “cabeça-de-bagre” não se leva em consideração. Diplomou, registrou, tá aí um campeão das letras, ao qual a sociedade deve um emprego e uma carreira. Uma cunhanha, deve nada. Se não for bom vai sobreviver a duras penas.

Só os néscios pensam que a profissão glorifica e enobrece. O prestígio aparente tem a espessura de uma folha de papel linha d’água, onde é impresso o jornal em que escreve, com seu espaço concedido. Cassado o espaço, o jornalista passa do dia para a noite a ser sub-nitrato de pó de futrica, gemendo injustiças nos cafezinhos, mesinhas de bar e bancos de praça. Sái à busca de emprego e ouve nas redações a mensagem transmitida: não há lugar, estamos demitindo, as verbas oficiais estão curtas, ihhh, tá uma dureza na praça. Só então, o jornalista começa a perceber como em vez de admirado, respeitado, querido ou odiado ele é perigoso. Isso porque é possível amordaçar as letras, mas não o pensamento. E é por pensar que ele se dana.

Agora, aí vem essa idiotice alimentada pela FNJ Federação Nacional de Jornalistas, com esse lance de patrulhar jornalistas. A massa escrevinhadora está protestando contra a idéia governamental de pisar nos freios com uma inspirada “liberdade de Imprensa”, coisa que nunca existiu nem existirá jamais. Forças cósmicas sempre agiram contra a liberdade absoluta de Imprensa. Politicamente não dá pra deixar a raça escrevente publicando o que quer, o que pensa e o que deseja.

A liberdade de imprensa é controlada quer seja no New York Times, no Times, no Haaretz de Israel ou num “dazi-bao” chinês, aqueles jornais murais.

Em 1957 eu entrevistava o chanceler paraguaio Raul Sapena Pastor, em Asunción (se escrevemos Buenos Aires, Santiago, San Salvador, La Paz, por exemplo, por que teimamos em chamar a capital paraguaia de “assunção”?). Perguntei ao ministro se havia liberdade de imprensa em seu país. Ele me disse que não, nem lá, nem no Brasil, nem em qualquer país do Mundo e me convidou a ir até a sacada, onde me apontou no jardim um jovem soldado, descalço, com uma farda andrajosa que, empunhando uma enxada, rastelava o jardim e me disse: ” Se houver liberdade de Imprensa aquele soldadinho, em 30 dias, troca a enxada por um fuzil e vai para as ruas incorporado a uma revolução”.

Pra encerrar esta matéria, que já está virando um catatau indigesto, lembro aqui as quatro manchetes do jornal francês Le Moniteur, noticiando sobre Napoleão. Dá o que pensar:

1.ª manchete: “O bandido fugiu da ilha de Elba”;

2.ª manchete: “O usurpador chega à costa francesa!”;

3.ª manchete: “Napoleão já está em Lyon!”;

4.ª manchete: “Sua Alteza Imperial alcança Paris esta noite!”

Wilson Silva é jornalista e escritor

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