É um cinema do corpo, um corpo em movimento, e de cara o diretor Nadav Lapid mostra o ator Tom Mercier nu, de frente para a câmera. Não se trata de provocação, mas uma forma de reconhecimento. Yoav é judeu e está querendo fugir – de Israel, de si mesmo -, mas a identidade, o pacto do homem judeu com sua religião, está ali, gravada no corpo, para lembrá-lo. Nadav conversa pelo telefone com o jornal O Estado de S. Paulo, a seis dias de iniciar – em 15 de dezembro – a rodagem do próximo filme. Admite estar numa fase de grande agitação, e preparativo, mas não se furta a conceder a entrevistas, se isso vai ajudar a divulgar o filme que estreia nesta quinta-feira, 12, nos cinemas brasileiros.

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“Eu tinha de sair de Israel, precisava fugir para tentar salvar minha alma. Se tivesse ficado, o nacionalismo beligerante e a hipervirilidade pregada como norma de conduta no exército teriam acabado comigo. A situação não melhorou nem um pouco, e foi levada ao limite com Benjamin Netanyahu. Esses direitistas só conseguem pensar em destruição. O outro não pode existir, tem de ser exterminado para eles. Nunca quis ser uma máquina de matar.” Como Nadav, Yoav não reza pela cartilha da violência e foge para a França. De cara, é roubado e fica à deriva. Não para. Está sempre se movendo. Mais que isso – está sempre tenso, como uma fera enjaulada. Mesmo no conforto de sua poltrona, o espectador sente isso. O homem na tela pode estourar a qualquer momento.

“Pensei o filme como um corpo a corpo permanente de Yoav com o mundo, mas também como um confronto do próprio filme com o público, que não se sente confortável. Toda a mise-en-scène foi planejada assim”, explica Nadav. Em fevereiro, quando Synonymes participou da competição na Berlinale, ele havia conversado rapidamente com o repórter durante a cerimônia de outorga do prêmio da crítica. Naquele momento, ainda não sabia que o filme receberia o prêmio maior do Festival de Berlim – o Urso de Ouro. Tem sido um ano muito intenso, acompanhando, às vezes localmente, a estreia pelo mundo, enquanto prepara o próximo filme.

Em Synonymes, Yoav ganha abrigo no casa de um casal, arranja um emprego como segurança. De repente, até por conta da função, envolve-se numa briga. Bate e arrebenta. Voltam as lembranças de Israel – do exército, de uma guerra que ele não quer combater, mas que o persegue. O corpo pode não ser o do próprio Nadav, que recorreu a um ator, mas evoca, permanentemente, o corpo do diretor. Mais que pessoal, é um filme autobiográfico. É tudo verdade.

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“Servi no exército, fugi para a França, tive um amigo que me abriu os olhos para a cinefilia. E, sim, eu andava por Paris com aquele dicionário, tentando aprender a língua francesa.” Fugir, para Yoav, significa romper com a própria língua. Daí o título, Sinônimos. O francês, língua de grandes poetas e literatos, abre um mundo de possibilidades – sim ou não?

Radicalismo

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Yoav anda muito, mas fechado em si mesmo. Não liga para a família, quase não come. Precisa arrancar do próprio corpo a semente de hipermasculinidade com que foi forjado no exército. O dicionário vira sua bíblia, sua religião. E ele (quase) se transforma num eremita. Passaram-se 20 anos, e agora Nadav consegue lembrar essa fase com distanciamento, até rir dela. “Para Yoav, é como se um demônio habitasse dentro dele, e dentro de cada sílaba de cada palavra em sua língua original. Ao tentar rejeitá-lo, ele corre o risco de suprimir as palavras. Quando jovens, nós radicalizamos com facilidade. Nossas ideias tornam-se concretas. O tempo e a maturidade terminam por nos fazer ver que não é assim, quem sabe adquirimos até um pouco de humor.”

O radicalismo permanece na forma como Nadav conta sua história e penetra a intimidade de Yoav para desarmá-lo. “O filme venceu Berlim em fevereiro.

Vieram depois Cannes e Veneza, com Parasita (de Bong Joon-ho) e Coringa (de Todd Phillips). Ouso dizer que, como linguagem, meu filme é o mais radical. Não estou dizendo que é o melhor, você pode até não gostar, mas só consigo entender o cinema como uma aventura extrema, que vai me tirar do conforto e levar não sei aonde. Synonymes não é para ser palatável.”

Nadav reconhece que teve a sorte de encontrar o ator certo. “Fizemos um casting intenso e extenso. Centenas de entrevistas e testes. Quando Tom (Mercier) chegou, era ele. A disponibilidade física, o despudor, a tensão. Quando lhe expliquei o personagem, ele não se assustou. Disse que o entendia. Isso, eu faço. E fez. É um filme sobre o embate entre corações e mentes. Coloquei nele minha experiência, e meu sentimento. Estou feliz com a repercussão. Synonymes encontrou seu caminho.”

Prestígio e prêmios

Nadav nasceu em Israel, em abril de 1975 – tem 44 anos. Estudou filosofia na Universidade de Tel-Aviv e fez o serviço militar obrigatório. Depois, foi para a França, mas, apesar de todas as tentativas, nunca conseguiu se desvencilhar de sua origem e voltou para casa. Cursou a Escolas de Cinema e TV Sam Spiegel – cujo nome honra o célebre produtor -, em Jerusalém.

Estreou com A Namorada de Emile, em 2006, e, depois disso, colecionou prestígio e prêmios. Policeman, de 2011, ganhou o prêmio especial do júri em Locarno, e The Kindergarten Teacher (literalmente, A Professora do Jardim de Infância) passou com sucesso na Semana da Crítica de Cannes, três anos mais tarde.

Policeman centra-se numa situação extrema com refém e coloca o personagem no centro de outra crise de identidade – e que tem a ver com o idealismo versus o cinismo do mundo contemporâneo. A Professora ganhou uma versão em Hollywood, com Maggie Gyllenhaal, dirigida por Sara Colangelo. A história da professora de jardim de infância que acredita que seu aluno de 4 anos é um pequeno gênio e tenta, de todas as formas, protegê-lo de uma família que não liga para suas capacidades, já carrega a questão da linguagem, tão importante em Synonymes.

Detalhe: os poemas do garotinho do filme foram escritos pelo próprio Nadav, quando criança. Tudo isso agora é história, e ele, cada vez mais seguro, reflete sobre o tipo de cinema que faz. “Não me sinto preso a um estilo de narrar. O que quero é lançar o espectador num turbilhão, oscilando entre vários estilos, mas mantendo a vibração. É o que busco, é o que me interessa no cinema.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.