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Estranhamento de ‘Cats’ tem sua compensação

Desde que surgiram as primeiras imagens de Cats, a versão para cinema do musical de Andrew Lloyd Weber, o conceituado diretor Tom Hooper tem vivido um pesadelo. Figura carimbada do Oscar – todos os seus filmes venceram em uma ou mais categorias: O Discurso do Rei, Os Miseráveis, A Garota Dinamarquesa -, Hooper viu-se, de repente, na posição nada agradável de estar assinando o equívoco do ano. As reações nas redes sociais foram acachapantes. Muita gente confessou-se traumatizada pela visão dos gatos humanizados de Hooper. O diretor retomou o trabalho com os efeitos. Não adiantou. Suprema humilhação – a empresa Universal anunciou que estava retirando oficialmente o filme da disputa do Oscar de 2020.

De nada adiantam os trabalhos anteriores. Se é verdade que, em Hollywood, cada técnico ou artista vale por seu último trabalho, então, nesse momento, Hooper não vale nada. É injusto. Ele não fez o pior filme da história.

Arriscou-se e talvez tenha perdido, embora aberrações muito maiores tenham virado cults com o tempo. Cats é desconcertante, desafia o entendimento do que deva ser – ou é – o cinema, foge a qualquer standard de realismo. Provoca estranhamento – muito. Mas é, apesar de tudo, um fracasso honroso. Não tem história, mas isso o espetáculo de teatro também não tinha. O Cats de Weber alinhava canções em torno de uma disputa de gatos para ver qual deles irá para um paraíso dos felinos. Um certo Macavity, gato mau, faz de tudo, inclusive usar de mágica, para se livrar dos demais concorrentes. Quer vencer a qualquer custo. Hooper até tentou armar um fiapo de história, e cria a garota, a gata jovem – Victoria -, que serve de fio condutor.

De cara, e num universo totalmente artificial, um carrão para numa rua mal-iluminada e de dentro salta uma madame que joga um saco no lixo. Os gatos da redondeza se ouriçam, cercam o pacote – perdão, o saco – e dele sai Victoria.

A partir daí, seu olhar será o nosso. Hooper já contou, em inúmeras entrevistas, como chegou a Cats. Foi a primeira peça que viu, a primeira vez que foi ao teatro, em Londres. Ele tem 47 anos, Cats tem estado no palco há 38. Era um garoto de 9 anos, impressionou-se com o que viu. Quando Os Miseráveis, sua versão do musical de Claude-Michel Schönberg, por sua vez inspirado na história de Victor Hugo, estourou na tela, a indústria começou a lhe cobrar nova incursão pelo gênero. Ele diz que não pensou muito. Vieram-lhe à memória as imagens de Cats, e ele decidiu-se rapidamente. Hooper pode achar que foi assim, mas talvez esteja se subestimando. Porque, à luz de sua obra precedente, tudo o levava a Cats.

Em O Discurso do Rei, ao dar voz a um rei gago que precisa das palavras para dar confiança a seu povo num período de guerra, ele colocou o Verbo no centro de sua mise-en-scène. O Verbo não deixa de ser essencial em Cats, posto que Weber se baseou em ninguém menos do que T.S. Eliot, o grande poeta, bebendo em seus versos. A grande cena de Os Miseráveis é a da Comuna de Paris, quando a massa espoliada se revolta contra sua condição e marcha unida, provocando a reação violenta da polícia do imperador e de Javert, que nunca deixou de procurar por Jean Valjean, só porque um dia ele roubou aquele pão. Com uma riqueza extraordinária de montagem – talvez seja O Encouraçado Potemkin dos musicais -, Hooper mostra o estopim e como o movimento individual vira coletivo. É o que ocorre em Cats quando Velha Deuteronomy é abduzida por Macavity e os gatos se unem ao que, entre eles, tem poderes mágicos – é seu número para tentar chegar ao céu -, e o esforço para trazer Judy Dench, que é quem faz o papel, vira uma expressão do grupo. E, claro, de A Garota Dinamarquesa, vêm as transformações que os humanos operam nos próprios corpos.

Houve um momento, lá atrás, em que Hooper considerou seriamente a possibilidade de fazer Cats como animação. Chegou a pensar nos estilos, e qual o mais adequado, mas logo deu-se conta de que a pouca história que tinha, animada, faria menos sentido ainda. Porque Cats precisa do estranhamento, da irrealidade. E criou esses humanos revestidos de pelos, e com rabos de movimentos digitalizados. Com eles, executou a coreografia de Andy Blankenbuehler. O estranhamento, que alguns consideram ridículo, pode até impedir que o espectador dê-se conta da fluidez dos movimentos de câmera e da elegância da montagem nos números de canto e dança. É o preço a pagar, mas duas ou três coisas estão acima do bem e do mal. Judy Dench como a Velha Deuteronomy é OK. Ian McKellen como o gato shakespeariano tem tudo a ver.

Victoria impressiona pela luminosidade no rosto da estreante Francesca Hayward, uma jovem bailarina. Muito se falou em Taylor Swift e sua Bombalurina, mas o que torna o filme obrigatório, e até visceral, é a rendição de Memory por Jennifer Hudson. O diretor nunca se dava por satisfeito e obrigou-a a repetir a cena 40 vezes. Jennifer foi à exaustão física e emocional, mas sem perder a técnica. Canta como quem se despedaça. Com pelo, ou sem pelo, não tem nada de risível. É de chorar.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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