Estados Unidos vão ou não “pro vinagre”

No começo dos anos 70s o jornalista Paulo Francis baixou em Nova York movido por um incentivo formidável chamado ditadura militar: se ficasse no Rio corria o risco de ser preso uma duas vezes por ano e ver a vida levada por uma cirrose hepática. Uísque e xilindró eram as opções para o jornalista, que não era de ficar de bico fechado e baixava o pau à direita e a esquerda. Naquele tempo Francis ainda era um esquerdista empedernido de ascendência trotsquista e serviu de modelo para o personagem Paulo Martins no frenético filme Terra em transe, de Glauber Rocha. O desespero de Paulo, na pele de Jardel Filho, é a tradução de Francis.

Em tempo de “Brasil: ame-o ou deixe-o”, Francis não pensou duas vezes: deixou a terrinha e foi para Nova York. Manhattan, cidade linda, lugar melhor não há. Uma vez em Nova York, foi se instalando e sobrevivendo, começou a pontificar – para o Brasil – ainda mais que no Brasil e quando percebeu era autoridade em tudo que era assunto, de genética a física quântica. Teatro e ópera eram fichinhas. Literatura e filosofia ele tirava de letra. O que era para ser temporada ficou permanente; a terra do exílio virou segunda pátria. Então Francis passou a dizer que estava na Corte para assistir à queda do império. O império americano, claro, a nova Roma.

Era uma espécie de nova e derradeira missão: ver de camarote o triunfo da barbárie. Que o império americano estava em crise, era dado de barato por qualquer cartilha, mas o diacho era que o império vinha balançando há muito, enfrentava dificuldades, mas não caia. A guerra do Vietnã, uma delas. Mas a guerra do Vietnã acabou. A guerra fria com a União Soviética, que consumia recursos sem fim, era outra. A União Soviética estava forte, quem ia ganhar a peleja? Quem caiu antes, para surpresa de muitos foi o robusto império soviético. Capitalismo 1, socialismo 0. O fim da guerra fria liberou recursos gastos com estripulias nucleares e ungiu os EUA como potência hegemônica. O bicho capitalista ficou forte e maludo.

Em vez do tombo, Francis viu o império regurgitar. Ele já não queria a queda do império, mas julgava que era inevitável; e não viu nada porque foi embora antes. Em parte, sorte dele. Levaria um susto danado quando dois aviões conduzidos por muçulmanos radicais atropelaram as duas torres gêmeas, no coração do império, levando pânico a uma parte do mundo – e regozijo a outra. Certamente Francis acharia que o mundo acabou e a barbárie instalou seu domínio. Talvez, com acerto, diria, que os bárbaros fundamentalistas estavam invadindo os centros civilizados do planeta para acabar com a farra pagã instalada pelo iluminismo. E que o capitalismo, finalmente, estava indo pro vinagre.

Mas o certo é que passado o susto, os EUA e o capitalismo estavam firmes. Firmes, claro, até a próxima crise em que tropeçaram no ano passado, pipocada por uma bolha imobiliária. Como não dava para falar em fim do capitalismo por que a China traiçoeira do socialismo mundial vestiu a gloriosa camisa 10 do capitalismo explorador e acumulando recursos estava cada vez mais rica e faceira, a pergunta que ficava era a seguinte: “E agora, os EUA vão ou não vão pro vinagre?”.

Seria exagero dizer que Jan Nederveen Pieterse é uma espécie de Paulo Francis da Holanda. Mas, para quem acompanhava as análises de Francis sobre as cólicas internacionais depois da Segunda Guerra Mundial, Pieterse soa algo familiar. Ele é um destes estudiosos que tentam responder a pergunta acima recheando a resposta de análises, números e evidências, para concluir: o capitalismo esta mais forte que nunca e os EUA não vão para o inferno.

Professor de Estudos Globais da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, onde vive desde 2001, Pieterse refaz e tenta responder no livro O fim do Império Americano?: Os Estados Unidos depois da crise (Geração Editorial, 293 págs, São Paulo) a velha pergunta sobre o destino dos EUA. Ele cita que nunca desde o início do século passado houve tantos novos elementos no tabuleiro político internacional. Depois de passarem a potência hegemônica com o fim da União Soviética, o, país foi parar nos dias de hoje num tremendo atoleiro: enfrenta guerra no Oriente Médio para garantir provisões de petróleo e um crash de proporções titânicas levou a nocaute o seu sistema financeiro, abalando também outras economias.

O dólar tísico inveja a robustez do euro e países emergentes como a China, Índia, Brasil e Rússia se assanham como atores importantes no cenário econômico e político. São elementos que apontam para uma decadência americana, mas Pieterse assegura que se a decadência é incontestável, ela não é tão assustadora e não alijará os EUA como forte ator econômico e político no cenário mundial. Resumindo: ainda não chegou o fim do império, mas sem dúvida começou a se mover mais rápido o trem de seu declínio.

Parece uma frase tirada de algum artigo de Paulo Francis. O começo do declínio americano, que nunca termina de começar. Que os Estados Unidos estão numa grande enrascada, não resta dúvida. E sair desta enrascada tem a ver com soluções internas para conter o consumo desenfreado de seus habitantes, dívidas internas e externas e gastos excessivos com guerras. Controlando esta fatura, os EUA têm força para se recomporem. Além disso, o outro lado da balança depende do que fizerem os países do chamado Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). Se é fato que estes países são emergentes, também é fato que tem crescimento desigual e futuro incerto.

A diferença fundamental no grupo é que China e Índia, além de se robustecerem economicamente, competem com o Ocidente por capital intelectual, buscando construir universidades de primeira linha, investindo em indústria de alto valor agregado e intensidade tecnológica e valendo-se de diásporas bem sucedidas de empresas. Já Rússia e Brasil são beneficiados pelos altos preços das matérias-primas, mas não investem essa bonança no desenvolvimento econômico de longo prazo. Portanto, é possível suspeitar que chineses e indianos possam se desenvolver de forma mais sólidas que russos e brasileiros. Só para variar.

A China está fundando cem universidades de alto nível e a Índia também concorre na corrida pelo poder intelectual. O que isto significa? Significa que estes dois países, enquanto os EUA agonizam, se preparam para competir nos fundamentos mais potentes do capitalismo, que é o poder intelectual, que envolve os demais setores produtivos. Pieterse – e não é preciso ser esperto para deduzir – aposta que as cólicas americanas serão curadas com algum tipo de Regulador Xavier econômico e os americanos voltarão à cena, mas não tão fagueiros como antes, e quando tudo estiver nos eixos mais uma vez, o mundo estará diante de uma multipolaridade. Ou seja, um novo sistema imperialista que já está sendo parido.

Assim, pode-se dizer que a presente crise, não é nenhuma crise final do capitalismo, que na realidade vive em crise desde 1848. Trata-se de apenas mais uma das muitas crises que o capitalismo ainda terá. Os pólos mudam de região, mas o sistema encontra fôlego e criatividade para sobreviver e ir em frente. Pieterse alerta os profetas do fim do capitalismo para não o subestimarem, principalmente, os seus recursos e a habilidade de seus participantes de transformarem crises em vantagem, bem como a heterogeneidade e biodiversidade do capitalismo. Afinal, diz ele, “o que salva o capitalismo são capitalismos no sentido de diversas filosofias e instituições que organizam as relações entre mercados, Estado e sociedade”. Para ele, capitalismo, no singular, é uma categoria muito tosca. Quanto às outras categorias, ele nem leva em conta.

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