Especialista em Shakespeare vem ao País para dirigir duas montagens

Repertório Shakespeare, projeto que estreia nesta quinta-feira, 5, no Sesc Vila Mariana, é a obra de um devoto. Enquanto conversa sobre suas novas encenações de Macbeth e Medida por Medida, Ron Daniels fala em “inteligência superior” e em “profundo respeito”. Em tom de confissão, diz ainda se sentir “meio místico”, como se em “contato com coisas milagrosas”. Para esse encenador brasileiro, fora do País desde os anos 1960 e hoje radicado em Nova York, as peças de William Shakespeare “são o Evangelho”. Nada mais, nada menos.

Até aí o discurso não difere muito do proferido pelo séquito de “fiéis” shakespearianos mundo afora. O curioso é que, em Ron Daniels, tamanha adoração não incorre jamais em reverência. Da boca de Thiago Lacerda, intérprete do nobre Macbeth, o espectador brasileiro não ouvirá versos em decassílabos. Ou sentenças em prosa extravagante. “Tenho profundo respeito. Porque amo essas peças. Mas nunca o considerei um clássico intocável. Isso é teatro. Então, a gente também pode brincar um pouco”, pontua ele, que já criou versões extravagantes, como a de um Hamlet de pijamas, e deve voltar a provocar barulho em fevereiro, quando estrear em Washington um Otelo protagonizado por um ator muçulmano.

Ao lado de Marcos Daud, o diretor passou três meses trabalhando nas traduções de Macbeth e Medida por Medida até encontrar o texto exato. E outros três meses na sala de ensaio com os atores. “O público irá sair com a sensação de que entendeu Shakespeare, todas as suas palavras. Ali, estão seres inteligentes, que gostam de ouvir, que gostam de entender. Não quero que a plateia se sinta burra”, fala sobre os espetáculos, que serão encenados concomitantemente, com o mesmo elenco, em dias alternados.

Reconhecido internacionalmente, Daniels é diretor honorário da Royal Shakespeare Company, e já assinou mais de 40 montagens do dramaturgo inglês, na Europa, Japão e Estados Unidos. Em 2012, estreou Hamlet em São Paulo e descobriu em Thiago Lacerda um “verdadeiro ator shakespeariano”. “Não entendo como, porque ele não teve essa formação, mas é isso o que ele é. Entende a estrutura do pensamento de Shakespeare, como só gente como Ian McKellen é capaz”, diz o criador, em referência ao ator britânico a quem também já dirigiu.

Viajando pela Escócia, em 1964, Daniels soube do golpe militar no Brasil e resolveu não voltar mais. Encontrou pouso na Inglaterra, trocou o nome Ronaldo Daniel pela alcunha atual, foi emendando uma peça na outra. Passou 30 anos longe. E, em 1998, quando finalmente veio fazer uma visita, reencontrou Raul Cortez – com quem havia trabalhado no Teatro Oficina, no início de sua carreira -, e surgiu a ideia de fazer Rei Lear.

Observadas as peças que o diretor escolheu apresentar no Brasil – Rei Lear, Hamlet e Macbeth – é possível notar o foco sobre um período muito específico da vasta produção shakespeariana. Como um bom discípulo, Daniels garante não ter predileção por nenhuma fase do autor. Faz um veemente aceno negativo com a cabeça, como se um pai questionado na predileção por um filho ou outro.

Coincidência ou não, o diretor escolheu montar aqui os títulos da maturidade de Shakespeare, escritos em um intervalo de menos de dez anos, quando examinou com apuro a questão da maldade e o embate do ser humano com suas pulsões mais violentas e selvagens.

Em Lear, o personagem título tem virtudes, mas traz dentro de si uma parcela do mal. Hamlet, por sua vez, defronta-se com uma vilania externa a ele. E, finalmente em Macbeth, encontramos um personagem que personifica a crueldade. “A concretização de nossos sonhos mais terríveis”, nos lembra Daniels. E o personagem perfeito para Thiago Lacerda.

“Hamlet me deu, de certa forma, os instrumentos para tentar descobrir os mistérios de Macbeth”, pontua o ator. “O príncipe é movido pela consciência e pelo desejo de vingança, porém, sua capacidade de ação é abafada por essa gigantesca consciência. Já Macbeth é guiado pela ambição e tem a seu lado uma mulher capaz de conduzi-lo até o seu ponto de destino.”

Se Macbeth era o texto que melhor cabia a Lacerda, Medida por Medida entra para compor o repertório criando um contraponto. O primeiro é um mergulho vertiginoso no mais escuro da alma humana. Para usurpar o trono e sagrar-se rei, Macbeth converte-se em assassino com o apoio da mulher, Lady Macbeth, vivida por Giulia Gam. “Ele precisa do impulso dela, da força da sua ambição”, lembra o encenador. “Ao contrário dele, consciente de cada um dos seus atos, ela é só desejo, só vontade, uma força incontrolável da natureza.”

Já a pouco conhecida trama de Medida troca a ‘noite’ absoluta por jogos de ‘chiaroscuro’. Ziguezagueando para contar a história de um nobre que quer coibir atos de imoralidade e corrupção com uma severa lei. “O texto derrapa pra lá e pra cá. É uma gostosura”, elogia o diretor. Com Luisa Thiré e Marco Antônio Pâmio nos papéis principais, a obra entra em bordeis e no submundo político para terminar em festa, casamento, perdão. Não oferece soluções para o dilema entre o homem civilizado e seus impulsos de destruição, mas traz esperança. “Não podemos esquecer que Shakespeare nasceu no campo”, ressalva Daniels. “Carregava a ideia de que, mesmo depois do mais profundo inverno, a semente congelada voltará a germinar e virá a primavera.”

REPERTÓRIO SHAKESPEARE

Sesc Vila Mariana. R. Pelotas, 141, 5080-3000. Macbeth, 5ª e sáb., 21h; Medida por Medida, 6ª, 21h; dom., 18h. R$ 18/R$ 60. Até 30/1

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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