Essa história começa dois séculos atrás, em 1812, com um navio encalhado na costa de Devonshire, no sudoeste da Inglaterra. Ninguém morreu no acidente, mas quase tudo se perdeu.
Do baú de Maria Branwell, de 29 anos, que naufragou, conseguiram salvar alguns poucos itens, entre os quais um livro que ela deve ter comprado dois anos antes. O resto, como ela escreveu depois para Patrick, seu futuro marido, foi tragado pelas profundezas. E então The Remains of Henry Kirke White, “salvo das águas”, como Patrick sinalizaria na folha de rosto após a morte da mulher com o pedido de que o livro fosse sempre preservado, passou a fazer parte da vida daquela família em formação.
Maria morreu muito jovem, em 1821, aos 38 anos, deixando seis filhos – a mais velha tinha 7, a mais nova, um. Certo dia, o pai deu para as crianças um conjunto de soldadinhos de brinquedo e elas começaram a produzir livros artesanalmente, bem pequenos para que os soldadinhos pudessem ler, e passaram a infância mergulhadas no mundo de fantasia. O resultado: nasciam, ali, grandes escritores. Emily (1818-1849), autora de O Morro dos Ventos Uivantes, Charlotte (1816-1855), de Jane Eyre, e Anne (1820-1849), de A Senhora de Wildfell Hall, são as mais famosas.
De volta ao livro de Maria. Tudo leva a crer que as irmãs Brontë e os outros membros da família tinham uma ligação especial com esta obra, guardada com carinho pela mãe. E isso só foi descoberto recentemente.
Patrick, o pai, foi o último a morrer, e quando isso aconteceu, em 1861, tudo o que estava na casa foi vendido em leilão. O reverendo J. H. Wood, ministro batista de Haworth, arrematou um dos lotes de livros, e levou o The Remains of Henry Kirke White. No final daquela década, os dois volumes viajaram com um novo dono para os Estados Unidos, que o transformou em um único tomo. Ao longo dos anos, ele foi mudando de mãos sem alarde e ressurgiu em 2015 para a surpresa de pesquisadores e fãs.
“Sabíamos há muitos anos da existência desse livro, mas tínhamos medo de que ele tivesse se perdido. O que não fazíamos ideia é que esse volume trazia manuscritos originais escritos por Charlotte Brontë”, diz ao jornal O Estado de S. Paulo Ann Dinsdale, curadora do Brontë Parsonage Museum, em Haworth.
O volume reapareceu em uma loja de livros raros na Califórnia, que logo entrou em contato com o museu. O valor era alto, ainda mais por causa dos manuscritos desconhecidos, e podia ter sido ainda maior se o dono quisesse levá-lo a leilão. Ele foi paciente, esperou o museu inglês conseguir levantar a verba para adquiri-lo e agora essa e outras histórias sobre sua rocambolesca saga, seu significado e sobre a célebre família são contadas em Os Manuscritos Perdidos, com lançamento no Brasil pela Faro Editorial.
A obra reúne ensaios de vários pesquisadores, imagens e fac-similares dos manuscritos, das anotações e dos esboços feitos por Maria e depois por seus filhos no livro. Esses manuscritos – um poema e um fragmento em prosa, escritos aos 17, além de uma carta escrita por Arthur Bell Nicholls, marido de Charlotte, pouco depois da morte dela – são transcritos na obra que traz até um prefácio da atriz Judi Dench, presidente da Sociedade Brontë.
Para Ann Dinsdale, este é um dos mais importantes itens da memorabilia de Charlotte a surgir nos anos recentes e um dos mais evocativos. Pelo livro em si, mas, principalmente, pelos papéis avulsos, de 185 anos atrás, encontrados nele e publicados agora pela primeira vez. “O fragmento em prosa de sua juvenília é especialmente emocionante porque é um exemplo inédito da sagacidade sarcástica de Charlotte”, explica.
Já Sandra Vasconcelos, professora de Literatura Inglesa e Comparada da USP, diz que uma descoberta como essa vale como curiosidade sobre o processo criativo dos autores e isso é fundamental para pesquisadores. “É mais uma pista, mais um documento que nos permite refazer sua trajetória e pensar como se deu sua formação”, explica. No caso de autores contemporâneos, é mais fácil ter esse tipo de informação. “Mas imagina essas meninas no século 19, perdidas no meio de Haworth, sobre quem ninguém sabe muita coisa. Cada descoberta é uma pecinha de um quebra-cabeça que vai se montando para escrever uma biografia, entender o processo criativo. É um achado”, explica.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.