‘Era uma vez em Anatólia’ é atração da Mostra de SP

“Era uma Vez na Anatólia”, do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan, evoca em seu título o tom das fábulas. E não deixa de ser isso em sua dimensão mais profunda. O filme, vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes (dividido com “O Garoto da Bicicleta”, dos irmãos Dardenne), é, porém, uma fábula para adultos. Vale dizer, para gente que aceita a incerteza como parte da existência, não exige explicações a cada passo e sabe que a vida pode ser dura e terna ao mesmo tempo.

Assim, esse espectador adulto é convidado a acompanhar essa estranha caravana policial, que percorre a estepe atrás do corpo de um homem assassinado. São três carros, que atravessam estradas desertas ao longo da noite. Num deles está o suposto assassino. Há também policiais, um médico, um procurador, escavadores. Toda uma comitiva em busca do cadáver.

Ceylan, diretor de “3 Macacos”, entre outros trabalhos, é conhecido pela maneira apurada como compõe o visual em seus filmes. São planos elaborados, que muitos já chamaram de maneiristas, querendo com isso dizer que podem ser apenas belos e rebuscados, sem qualquer conteúdo maior. Não parece o caso – e muito mais em “Anatólia”, no qual cada imagem surge carregada de significado.

Desse modo, a “trama” nada seria sem a panorâmica dessa estranha viagem pela noite, através da paisagem despojada, em busca da cova rasa de um morto sobre o qual nada sabemos. A iluminação é fantasmagórica e revela apenas os rostos dos homens no interior do carro, falando das coisas prosaicas do dia a dia, como a dificuldade de deixar o fumo ou problemas com a próstata quando se chega à meia idade. Coisas assim. Mas que, curiosamente, vão preenchendo os vazios dessa narrativa porosa e deixando aparecer aqueles personagens anônimos como seres humanos em sua integridade.

Ceylan serve-se das palavras, das grandes imagens e também da simples troca de olhares. Quando a caravana se detém para descansar um pouco na casa de um camponês, há uma cena desse tipo. A filha do dono da casa, uma bela adolescente, serve uma bebida aos homens. Troca um olhar com o prisioneiro e este mostra um rosto desolado, olhos úmidos, tudo dizendo, talvez, de uma vida perdida, que havia tomado um rumo sem volta, sem nada a fazer. Tudo o que poderia ter sido e não foi. Esses significados ressoam na cabeça do espectador sem terem sido explicitados pelo cineasta. Ele apenas se serve desse maravilhoso dispositivo de imagens chamado cinema para despertar em nós sentimentos como a compaixão (pelos outros ou por nós mesmos?). Enfim, é um cinema que ressoa, visual e auditivamente, e pede que entremos em ressonância com ele.

Há nele algo que podemos chamar de uma trama. Um drama familiar que aos poucos se esboça e vai mostrando sua face, ainda incerta. “Anatólia” progride num ritmo que nada tem de estetizante e vai apurando as suas arestas à medida que o dispositivo é montado. Até mostrar sua verdadeira face e gume, que é o de uma dissecção. Numa cena, para alguns insuportável, revela a sua vocação de ir fundo nesse abismo que às vezes chamamos de natureza humana. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

ERA UMA VEZ NA ANATÓLIA

Reserva Cultural – Hoje, 15h50

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