Não parece que foi ontem. Foi há muito. Tinha dezesseis anos e não me lembro de onde me caiu nas mãos a edição de O Estado do Paraná com a notícia da batalha campal entre estudantes e polícia no campus da Federal em Curitiba.
Foi em maio. Em 1968. O ano das grandes agitações. A foto era de Edison Jansen, com quem vim a trabalhar trinta anos depois.
O estudante com estilingue veio a ser conhecido por Dr. Zequinha. Ele mirava um policial a cavalo, com cassetete empunhado para arrebentar a cabeça do rebelde.
A imagem era forte e ficou na minha memória e na história. E rendeu Prêmio Esso, um dos dois que o jornal recebeu. Aquilo era bom jornalismo.
Ainda não sabia o que seria quando ficasse adulto. Eu estava indeciso em ser astronauta ou guerrilheiro, duas profissões excitantes e perigosas, mas a foto e texto no jornal me fascinaram. Não cansei de olhar e ler. Um ano depois trabalhava no escritório de pequena cooperativa de motoristas que transportavam sacas de café das máquinas para os vagões.
Um pessoal com ponto ao lado do pátio de manobras da estação ferroviária, no centro de Maringá. A sala do escritório ficava na Avenida Herval ao lado da distribuidora de O Estado.
Fiquei amigo dos funcionários da distribuição com direito a cortesia diária. Passei a leitor assíduo. Este o começo de minha história com este jornal, onde estou há mais de treze anos.
Com a Tribuna do Paranáfoi diferente. Quem me levou às páginas do jornal foi o Grêmio Esportivo de Maringá. Numa segunda-feira de março de 1965, um dia depois de o alvinegro derrotar o Seleto de Paranaguá por 2 a 0 no Willie Davids e conquistar o bicampeonato estadual de futebol. Mantive o jogo na memória.
Mas quis rever os detalhes, queria a prova documental para ter a certeza que não foi sonho. A prova estava na banca defronte o Bar do Duti, na avenida Getúlio Vargas, em textos e fotos impressos nas páginas da Tribuna.
Comprei dois exemplares, um para o gasto. Os amigos queriam folhear, mostrar a seus amigos e parentes, iam passar de mão em mão. Aquilo não ia durar muito. E outro exemplar para quando ficasse velho, me lembrar da tarde de domingo feliz.
O primeiro alguém levou no primeiro descuido. O segundo ficou comigo alguns anos até o papel amarelar e alguém taxar de documento histórico e pedir para uma finalidade que não me recordo e que devo ter achado justa.
Não serei cabotino e dizer que estes foram os únicos jornais de minha vida, dos que mais gostei. Estaria mentindo e traindo minha história. Estes se somam a outros que gostava na infância e juventude: Folha de Londrina e Folha de S. Paulo. Sem premeditar, trabalhei nas quatro publicações.
Na Folha de S.Paulo, depois de algumas semanas, fui para a Agência Folhas – do mesmo grupo. E sai porque quis. Nestas redações conheci todo tipo de gente, as maravilhosas compensaram as que não foram.
E como são elas que ficam na memória, a impressão que tenho é a de que todos foram legais. Uma falsa impressão que não faço questão de apagar. Também não vou deixar de citar meu apreço por Última Hora, Jornal da Tarde e Jornal do Brasil.
Todo este lero-lero, com cara de balanço de fim de ano, se explica pelo fato – já anunciado -de O Estado do Paraná deixar de circular na forma impressa para ficar apenas no formato digital. Por mais ágil que seja sempre serei leal a forma impressa, a primeira que conheci e que cultivei longo tempo.
E, também, a que me levou ao jornalismo. Vou sentir saudade deste jornal impresso. Certamente deve ser parte de uma herança genética implantada no DNA da humanidade por Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg, no longínquo ano de 1439, quando ele criou a prensa móvel com o uso de peças tipográficas.
O jornal impresso foi uma consequência desta invenção e do interesse humano pelas notícias. Por isso acho que todo jornal impresso que desaparece, mesmo que continue no formato digital, é um golpe.
No meu caso, aprendi muito cedo a manusear o jornal impresso, com a extinta Folha do Norte do Paraná, embora houvesse na época outros formatos, como o radiofônico.
Não pe,rdi o gosto e o hábito de ir a uma banca. Quando menos percebi, estava numa redação. O meu primeiro chefe, um sujeito gentil chamado Waldomiro Badini Neto, contribuiu para o gosto se transformar em profissão.
Foi em 1975, no Diário de Maringá, onde passei a lidar com o cheiro da tinta, do jornal impresso, observar o velho Gumercindo Carniel preparar as máquinas, o movimento das bobinas em direção da impressora, o movimento alucinante da rotativa, a dança das notícias na impressora numa velocidade vertiginosa – e a dança das notícias nas páginas do jornal de um dia para outro.
Não precisei muito para perceber que a redação seria minha pátria, a tinta meu sangue. E assim tem sido. Num dia de 1977, O Estado reproduziu uma página de reportagem sobre violência no campo na região Oeste, que fiz para O Diário de Maringá.
Esta e dezenas de outras reportagens feitas pelo jornal, como a cobertura do célebre conflito no Sudoeste, passam para as histórias. As edições impressas e encadernadas de O Estado passam a pertencer a três histórias: a propriamente dita, a do jornalismo paranaense e a do próprio jornal em sua forma impressa, cujo círculo de décadas se encerra.
Estes tomos registram a vida oscilante do veículo, entre altos e baixos, entre glórias e decadências. Glórias marcadas por prêmios Esso, reportagens memoráveis e chanceladas por centenas de pessoas que passaram por sua redação e oficinas.
Alguns nomes fazem parte da história da cultura paranaense, como Paulo Leminski, Manoel Carlos Karam e Cláudio Seto e outros, como Aramis Milarch, ajudaram a difundi-la.
Muitos tiveram suas vidas inteiras ligadas ao jornal, como Mussa José Assis, o grande mentor. Ou Rafael Munhoz da Rocha, Dante Alberti e Dante Mendonça. São nomes que formam uma galeria, como outros. Quem conheceu o jornal sabe: a lista é longa. Estive nela. Uma honra.
De minha parte sou grato. Ao Altair, que foi leal nos primeiros momentos, quando outros não. À convivência fraternal com Francisco e Rafael. Na editoria, Elizabete Castro e Roger Pereira fizeram dum fardo diário uma aventura agradável, embora nem sempre prazerosa por razões além de nossa alçada.
Osvalter Urbinati nos últimos anos me resgatou o prazer de escrever sobre variedades ao produzir a terceira página da edição dominical de Almanaque, com ilustrações refinadas de sua lavra, traço que homenageia mestres, como Lan. É jovem, tem o mundo à sua frente.
Eu sei. Por melhores que sejam meus dias, profissionais ou não, de agora em diante, sentirei saudade das coisas boas nos derradeiros anos de O Estado. Claro que vou tratar de esquecer as que não foram boas, elas existem em todos os lugares, mas não foram feitas para serem guardadas.
O jornal tem bela história, escrita por centenas de grandes profissionais ao longo do tempo, que recordarão sempre o alucinante movimento das rotativas, os jornais saindo na esteira, os caminhões levando ainda de madrugada pacotes de exemplares para as bancas e o produto nas mãos dos leitores na Rua XV ou numa banca de bairro.
Ainda que a nova plataforma seja bem sucedida, sentirei saudade. Saudade não tem idade, nem explicação racional. E quando falar em O Estado, como jornal impresso, terei de recorrer à velha fórmula de Hans Christian Andersen ou dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm: ‘Era uma vez….’. Sei que haverá sempre alguém para ouvir.