Em 1985 a escritora francesa Marguerite Duras (1914-1996) dirigiu o Les Enfants, baseado num conto seu, Ah! Ernesto (1971), que trazia um garoto de 7 anos (interpretado por um adulto) que se recusa a ir à escola. Quando a mãe lhe pergunta a razão, Ernesto responde: “Porque a escola só ensina aquilo que eu não sei, e o que eu não sei não me interessa saber”.
O que poderia parecer um elogio à ignorância é, na verdade, a constatação de que o mundo dos adultos tem pouco a ensinar às crianças. A mãe insiste e pergunta se ele não quer explicar melhor. Ernesto diz que seria inútil, porque ela não compreenderia.
Esse prelúdio é necessário para apresentar a educadora e pesquisadora baiana Lydia Hortélio, de 86 anos, homenageada pelo Itaú Cultural na 45ª mostra da série Ocupação, dedicada a contar a trajetória de figuras importantes da cultura brasileira em diálogo com criadores da nova geração. E Lydia é, hoje, uma referência quando se fala do tema – e de crianças. Musicóloga e colecionadora de brinquedos populares (ela tem mais de 3 mil em seu acervo), Lydia Hortélio deu uma pequena volta ao mundo e teve aulas com alguns dos maiores mestres da música – entre eles, o maestro e compositor alemão Koellreuter, professor de Tom Jobim – para descobrir sua vocação: pesquisar acalantos, brincadeiras e jogos infantis do Brasil. A Ocupação Lydia Hortélio, instalada no térreo do Itaú Cultural, mostra um pouco de seu universo lúdico com curadoria de Gandhy Piorski e Adelsin Murta.
A empatia de Lydia com as crianças é evidente. Pouco antes do início desta entrevista, um menino se aproximou dela, no café do Itaú Cultural, abraçando-a de forma efusiva, como se a conhecesse desde sempre. Ela retribuiu o carinho e diria depois que esse foi um dos motivos que a levaram a trocar a Alemanha, onde vivia com o marido, pelo Brasil, onde, acredita, a relação calorosa e o espírito infantil vão vencer “todas as tentativas de uniformização cultural” e o “desprezo” que os poderosos têm pelos destituídos.
Filha da casa-grande, Lydia poderia ter se submetido ao poder patriarcal do sertão baiano, mas sua insubmissão rendeu ao Brasil uma educadora capaz de entender a senzala e o pequeno Ernesto de Marguerite Duras. “Minha mãe sonhava com uma filha pianista, e meu pai acabou comprando um piano Essenfelder, que chegou ao sertão baiano de trem, levado à fazenda de meu pai em carro de boi.” Aos “trancos e barrancos”, conta Lydia, chegou o momento de ela se aperfeiçoar e estudar na Escola Superior de Música de Freiburg e, depois, na Academia de Música de Detmold, na classe do pianista e violinista Klaus Schilde, hoje com 93 anos, voltando ao Brasil para retomar os estudos na Europa, onde frequentou a Universidade de Berna, especializando-se em etnomusicologia sob a direção do professor Sandor Veress (1907-1992), aluno de Béla Bartók e mestre de Ligeti.
Esse suíço de origem húngara “tinha um gênio terrível”, conta. Lydia tocou para ele o minueto da Sonata em Ré maior (opus 10, número 3) de Beethoven. Sandor odiou. Disse, enfático, que ela não entendia o “menuetto” porque o Brasil não tinha um rei para dançar a peça de Beethoven. Lydia, arrasada, foi curtir a mágoa com o então namorado (e depois marido), o alemão Ingo Goritzki, com quem morou vários anos em Frankfurt, onde nasceu sua filha Elisa, flautista que se apresentou na Ocupação do Itaú. “Fiquei muito triste com o comentário do professor Sandor, mas, ao sair do conservatório, fui para um bosque e cantei ‘E Daí?'” (composição de Miguel Gustavo). No entanto, reconhece que, sem o mestre, ela não teria descoberto a banda de pífanos que a fez pesquisar a cultura popular e as tradições do Brasil profundo.
“A música principia onde a palavra não alcança”, diz Lydia, parafraseando um alemão. Sem mestrado ou doutorado, ela voltou da Alemanha e tem registrado, desde então, os acalantos da infância e outras manifestações musicais na zona rural, particularmente de Serrinha (BA). Criou a Casa das Cinco Pedrinhas, que define como “um lugar de brinquedo, de prática, pesquisa e documentação da cultura da criança”. Com o método de Bartók e Kodály aprendeu muito, mas diz que “nada se compara a ver um menino brincar”. Para a musicóloga, as escolas precisam se reciclar. “Ali, a criança acaba morrendo”, alerta. “Estamos tropeçando nos escombros do Velho Mundo”, analisa. “As crianças têm de reaprender a cantar, brincar.” Nesta terça-feira (23), às 10h e 18h30, ela participa de um debate com os curadores sobre o tema.