Um monte de gente. Eles iam tentar entrar. Não tinham comprado ingresso. O Piazinho já tinha ido nos treinos, no jogo nunca. Na frente da baixada, o Piazinho e mais dois outros meninos da Vila. Treze e quatorze anos. Tamanho de onze. Os três se conheciam; os nomes não importavam. Sempre se encontravam, aqui e ali, na Vila, nos sinaleiros. O Piazinho parecia saber o que estava fazendo. Comandava o grupo. Identificou o Tio da entrada, aquele que havia prometido que iam entrar. Furaram a fila, gente olhando torto. Olhou para o Tio, sorriu, esperou o reconhecimento. O Tio fingiu não ver, moveu a roleta. O Piazinho e um dos meninos entrou. O terceiro do grupo ficou para fora. Dentro, o estádio lotado. Acharam um lugar na geral. Com um pedaço de plástico, o Piazinho assobiava alto, bem agudo, bem forte. O homem gordo sentado ao lado achou graça. Pagou um cachorro e uma coca. Gol do Atlético logo no começo. O Caldeirão vibrou. Um boné veio voando em direção ao Piazinho. Agarrou o boné, colocou debaixo da camiseta gasta. Ia levar para casa. O jogo terminou depois de mais um gol. Saíram do estádio correndo. Encontraram o amigo do lado de fora. Contaram vantagem. O Piazinho ergueu a camiseta e mostrou o boné, bonito, novinho. O amigo que ficou do lado de fora quis fazer rolo com um tênis. Piazinho não quis. Voltaram para a Vila, os três, felizes, gritando:
– Coxaradaaa…
Na vila, cada um pro seu lado. Piazinho queria contar para a Mãe a sua decisão. O treinador disse que levava jeito para a coisa. Piazinho chega em casa, encontra a mãe chorando. O Padrasto, o Joel, bêbado, bateu na Mãe. O Piazinho quis proteger a Mãe, reagiu, xingou. Tomou um soco na cabeça. Sorte que estava com o boné novo. A Mãe, bêbada, ferida por dentro e por fora, ralhou. O Piazinho não entendeu. Estava certo. Saiu de casa, meio tonto do soco, meio tonto de raiva. Foi dormir na rua. Passou a morar na rua.
Marília tinha conseguido transferência para a PUC. Ia estudar junto com o namorado. Ele, já morava em Curitiba faz tempo, desde o terceirão. Ela, passou no vestibular de Odonto no interior. Demorou três anos para conseguir a transferência. Três anos de briga, de saudade. Muita festa em Curitiba. Romperam e reataram o namoro. Ciúme. Agora estava tudo certo. Mudara para Curitiba. Trazia o carro, presente do Pai, fazendeiro. Tinham apartamento na Capital. Contou para a mãe que queria morar com o namorado. O Pai achou ruim. A Mãe convenceu o Pai. Eles iam casar, de todo jeito. O apartamento seria deles. Iam ficar em Curitiba. Os dois dentistas.
O Piazinho ficava sempre no mesmo sinaleiro. Aprendeu a pedir. Todo dia era seu aniversário. Todo dia precisava ajudar em casa. Não tinha casa e a data do seu aniversário não sabia. Pedia sempre pra mulher. Mulher com criança no carro. A mulher dava o dinheiro, com um pouco de pena, um pouco de medo. As crianças no banco de trás, diferentes em tudo do Piazinho, olhavam caladas, assustadas, agarradas aos seus brinquedos. O dinheiro passava para o Piazinho, a janela do carro fechava rápido. O carro ia embora, rápido, fugindo. As crianças olhavam pelo vidro de trás, olhos esbugalhados.
Jamaica chegou no sinaleiro. Bem maior, bem mais velho que os outros guris. Lutava capoeira e chute-boxe. Tinha saído da prisão. Não conseguiu emprego. Bateu em todo mundo. Impôs respeito e virou Chefe. Mandava e cuidava do Piazinho. Jamaica vendia pedra. O Piazinho entrou no crack. Vendia, ganhava um pouco. Fumava a pedra e sentia o zumbido na cabeça. A pedra matava a fome, matava a tristeza. Agora, o Piazinho esmolava para comprar Pedra. Comprava do próprio Jamaica. O dinheiro que pedia já não dava. Trocou com um cara da Vila algumas pedras por um revolver. Passou a roubar de berro na mão. Mandava dar o dinheiro, não pedia. Não ajudava mais em casa, nem fazia aniversário. Com o revolver ele mandava. Mandava com raiva de tudo. Só o crack matava a raiva que rasgava de dentro para fora. Para matar a raiva, assaltava de revolver na mão.
Marília voltava do médico. Recebera a notícia. Estava feliz e chorava de alegria. Queria contar para o namorado que iriam adiantar o casamento. Felipe, se for menino, Carolina, se for menina. Passou na loja antes de chegar na faculdade e comprou uma roupinha verde. Mostrou a roupinha e contou para as amigas. Muitos abraços e beijos. A melhor amiga prometeu o chá de bebê. Ia fazer surpresa para o namorado, pediu que não contassem. As matérias não coincidiam, ele já havia ido para casa. Deixaria as roupinhas em cima da cama.
Tudo que o Piazinho pedia, ganhava ou roubava virava crack. Jamaica tinha sumido. Fugido, morto ou cadeia. O Chefe foi embora mas o vício ficou. Piazinho, que tinha o revolver, agora era Chefe. Marília voltava da PUC feliz da vida. A sacola, branquinha e rosa, com as roupinhas no banco de trás. Pensava na cara do namorado. Pensava na surpresa. Pensava em contar a notícia.
O Piazinho agora era o Boné, pois o boné nunca tirava da cabeça. Boné era o chefe do sinaleiro. Quem mandava no Boné era o crack. A Polícia já sabia do tal do Boné. Várias queixas. Colocaram uma viatura no sinaleiro. Marilia parou no sinaleiro. Boné olhou o carro limpo e bonito de Marilia. Olhou a sacolinha. Marília pensava no casamento, na cara do namorado, no Felipe ou na Carolina. Boné estava tonto. Marilia olhava no espelho, queria ficar bonita. Boné veio vindo, olhos fundos vidrados, revolver na mão. Marilia sorria sozinha, cantava uma música da Marisa Monte. Boné grudou no carro. Marilia não viu Boné. Boné gritou e bateu o revolver no vidro. Marilia berrou alto, muito alto, de susto, de medo. Boné puxou o gatilho. Um BUM, vidro quebrado, sangue no parabrisa. A cabeça de Marília caiu para frente, a boca aberta, o cabelo loiro encharcado de vermelho. Boné agarrou a sacolinha e correu. A polícia viu, mandou parar. Boné correu, outro BUM, Boné caiu pra frente, a cara raspando no chão. Um tiro que entrava nas costas e saía no peito. O soldado que dera o tiro tremia. Nos outros, carros, gritaria, conheciam a menina, estudava na PUC, coitada. A sacolinha, vermelha e suja, ficou caída no asfalto ao lado do corpo do Piazinho. O Boné pulou para frente.
Ligaram para o interior e contaram a tragédia. Avisaram o namorado de Marília. Na Vila, contaram que o Piazinho tinha morrido. A Mãe do Piazinho reconheceu o corpo. O Pai de Marília veio do interior, abraçou o namorado, choraram juntos. A Mãe do Piazinho saiu do IML de braço dado com a vizinha. A Mãe do Piazinho não chorava mais, estava faz tempo seca de tristeza. A Mãe do Piazinho nunca soube que ele havia decidido ser jogador de futebol. As colegas de Marília guardaram segredo. Não queriam aumentar a dor da família. Foram enterrados no mesmo dia: Marília, Carol ou Felipe, e um futuro jogador de futebol. A sacola com a roupinha e o boné ficaram caídos na Rua. Desapareceram, no vai e vem do sinaleiro.
Aristides Athayde
é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce aristides@aristidesathayde.com.br