Catherine Millet é um escritora e feminista consagrada francesa que ficou mais conhecida recentemente pela internet por ter sido uma das autoras de um artigo publicado no jornal francês Le Monde, em que criticava o movimento #MeToo e defendia o direito da “liberdade de importunar”. Foi esse o tema de sua palestra em São Paulo na noite de quarta-feira, 4, no Fronteiras do Pensamento, em que atacou os “as ideias antiquadas” do movimento e criticou o que chama de “feministamente correto”. Para ela, assédio é caso de tribunal, não praça pública – mesmo que reconheça que a Justiça nem sempre funciona.

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A explicação do termo que brinca com o politicamente correto, segundo a francesa, “são tentativas de releituras à luz do que se chama agora de feministamente correto, que vem de mulheres acadêmicas e intelectuais”. Essas mulheres apontam para uma cultura de estupro – termo que ela não utilizou – em obras artísticas, como filmes e quadros. Uma delas disse que ao rever o filme “Blow Up” (1966), de Michelangelo Antonioni, sente nojo. O protagonista fotografa um casal (no próprio cartaz do filme, é uma imagem dele tirando uma foto em cima da mulher), e para a autora que Millet critica, as fotos remeteriam a estupro.

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“Não posso falar desse movimento sem falar de censura”, relaciona a escritora. Outros exemplos que dá desses feministamente correto seriam mulheres que tentaram impedir uma exposição dos filmes de Roman Polanski, acusado de estupro de uma menor de idade, na cinemateca de Paris, ou mesmo de um alerta para se parar de ler “A Bela Adormecida” às crianças, porque o príncipe não teria pedido autorização para beijo da princesa. Esse e outros exemplo tidos como exagerados do movimento feminista tiraram risadas da plateia, que quase encheu o teatro Santander, com capacidade de 800 pessoas.

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Millet também atacou um dos pilares da terceira onda do feminismo: a sororidade. “Não estamos mais no início do feminismo, em que era preciso uma corrente única unida”, disse a escritora. O conceito, que hoje estampa camisetas e até corpos de jovens em forma de tatuagem, alude a uma relação de semelhança e solidariedade entre as mulheres. Para Millet, contudo, a palavra tem outro sentido. “Sororidade tem uma conotação religiosa. E quando me recusei a ser uma irmã, me olharam como se fosse uma infiel”.

A recusa para entrar na sororidade do século XXI foi quando criticou o escracho público aos homens acusados de assédio à época do movimento feminista hollywoodiano. Millet foi acusada de insensibilidade com as supostas vítimas e de ter saído em defesa dos supostos agressores. Em sua conferência, ele se defendeu de duas formas: primeiro, contando e questionando certos casos públicos de assédio e, segundo, defendendo o caminho pela Justiça.

Em um dos casos, uma mulher relatou em um artigo publicado na revista americana Newsweek que um homem do seu trabalho que há 30 anos teria pegado na sua bunda e dito palavras de conotação sexual e o fato a teria deixada traumatizada para a vida. Em tom quase de deboche, Millet diz que o caso é quase caricato e conta que pode até aceitar que uma jovem particularmente ingênua tenha se sentido assim, mas questiona se são todas ingênuas. As de Hollywood, responde que duvida.

“A justiça, elas estimam deficitária, então querem fazer justiça elas mesmas com as redes sociais e a imprensa. E a imprensa, devo dizer, que publica esses testemunhos de redes sociais constitui um problema grave à democracia”, criticou a escritora. A crítica às condenações em praças públicas talvez tenham sido o ponto alto de sua palestra, porque são um efeito comum da era da internet e ocorre não apenas no campo das violências de gênero. Ela chama de “superexposição midiática perigosa”. O que Millet faz, na verdade, é se posicionar contra o linchamento e a publicação apressada que por vezes a imprensa faz, tornando o suspeito em condenado.

Neste mesmo ponto é onde Millet cai em contradição. Ela critica as acusadoras que “ao invés de irem a um tribunal, fazem linchamento simbólico”, mas também diz que esses casos de assédio sexual são difíceis de se comprovar, porque acaba ficando a palavra de um contra a palavra de outro. A solução para todos os casos que ficaram silenciados e sem justiça até pouco tempo atrás, Millet não se arrisca. “Fica claro que ela não acredita no Estado democrático de Direito”, disse, em referência a um artigo de acusação de assédio. Talvez ela não acreditasse mesmo e a justiça que tarde e mesmo falha, que a própria Millet apontou, pode ser um dos motivos para isso.

A lógica do escracho de que se um homem inocente foi acusado injustamente deve ser minoria e, infelizmente, efeito colateral, a francesa questiona veementemente. A presunção de inocência, para ela, deve ter mais espaço nas praças públicas que as acusações de violência. A autora chega a fazer uma dura comparação: “Ela (uma mulher que expôs essa lógica no fórum do #Metoo) não deve conhecer os julgamentos de Moscou”, em uma referência à Rússia soviética de Stálin.

Quem procura coibir assédio e aplacar a justiça falha por meio de leis também está errado, para Millet. A autora cita o caso de um primeiro ministro nórdico que disse aos seus cidadãos: “se não tiver certeza, não faça”. Mesmo que em nenhuma lei ou verbete feminista se diga que consentimento tenha que ser verbal, numa lógica quase infantil, a francesa brinca com isso e questiona como ter essa certeza na intimidade. Mas o maior problema, com o qual encerra sua palestra, é: “Se a lei entrar de foram tão profunda em um sujeitona intimidade e na intimidade ordinaire do cidadão, será uma lei de um Estado totalitário.”