Paraty – Aberta a Festa Literária de Paraty. Se ainda restava alguma dúvida, um resquício que fosse, sobre a qualidade literária da escritora Siri Hustvedt, a recente publicação de seu terceiro livro, O Que Eu Amava (Companhia das Letras, 512 págs., R$ 50), serviu para limpar os horizontes. Ao tratar com rara sensibilidade de uma trama que envolve arte e loucura, conduzindo o leitor a regiões obscuras da existência, Siri ganhou respeitabilidade e deixou de ser apontada apenas como a mulher de Paul Auster. Ela participa hoje, a partir das 16h45, do debate Léxico Familiar, ao lado da portuguesa Lídia Jorge e do irlandês Colm Tóibín, durante a 2.ª Festa Literária Internacional de Paraty.
O Que Eu Amava figurou nas listas estrangeiras dos melhores romances do ano passado. “Trata-se de uma artista única escritora de grande inteligência, de enorme sensualidade e com um dom mais difícil de definir, que eu só posso chamar de sabedoria”, derramou-se Salman Rushdie. Ele se encantou com a narrativa sobre o historiador de arte Leo Hertzberg que, em 1975 visita uma galeria do Soho, em Nova York, e se sente atraído por um quadro de William Wechsler, pintor que até então desconhece.
Fascinado pela obra, compra o quadro e vai atrás do artista. É o início de uma amizade duradoura. Leo e William vão morar no mesmo prédio, com as respectivas mulheres, e tornam-se pais na mesma época. Os anos de felicidade, porém, serão abalados – primeiro por uma tragédia, depois, por um caso de dupla personalidade.
“O final é triste, mas minha intenção não foi criar uma história depressiva”, contou a escritora, de Nova York, antes de viajar ao Brasil. “Leo sobrevive às amarguras e, principalmente, continua com o dom de amar as pessoas.” Filha de noruegueses, de quem herdou os traços nórdicos, Siri exibe uma silhueta de modelo, com bela estatura e curvas bem delineadas. O perfil não encobre, porém, a obsessão de uma criadora. “Fiquei seis anos escrevendo o livro, a ponto de saber em detalhes a vida de cada um dos personagens, como sua infância e os primeiros namorados.”
Mesmo assim, ela conta que precisou de tempo para descobrir realmente que caminho deveria seguir, que vibrações deveriam ser excluídas e quais pontos deveriam ser privilegiados. “Escrever ficção é um ato misterioso”, comenta. “Exceto pelas críticas de arte, que também faço, um romance exige um íntimo contato com o inconsciente. Para mim, é como estar consciente durante um sonho.”
Aos 48 anos, Siri acredita que não seria capaz de escrever com tamanha densidade se fosse mais jovem. Primeiro, é preciso dispor de um conhecimento aprofundado sobre o mundo das artes dos anos 1970, época em que a história se inicia – como seu personagem Leo, ela também é crítica de arte. “E, além disso depois de uma certa idade, é mais fácil enfrentar lugares tenebrosos da mente, que já não parecem tão distantes.”
A escritora americana foi hábil ainda em oferecer a possibilidade da dúvida ao leitor quando, logo no primeiro parágrafo do livro, Leo, o narrador, afirma que enxerga mal atualmente. Assim, como confiar na história que vem a seguir? A pergunta lhe provoca risos. “Entendo a angústia de um leitor ao se deparar com tal afirmação”, comenta. “Mas penso que é uma forma de dizer que há várias versões de uma mesma história e os olhos que mal enxergam nos fazem lembrar que podemos ter uma visão cega sobre um fato, que nem todos os detalhes são visíveis.”