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Em ‘O Violão Azul’, o autor John Banville mostra como a traição é inspirador

A prosa do escritor irlandês John Banville é habitualmente encorpada, direta, estilizada. Por isso que surpreendeu a publicação de O Violão Azul (Biblioteca Azul), apontado como seu livro mais divertido. A trama acompanha Oliver Otway Orme, rapaz hábil em duas artes: a da pintura e a do roubo. Com razoável sucesso na primeira, ele pratica a segunda em segredo, até o momento em que decide “roubar” a mulher do melhor amigo.

Eis o ponto de partida para Banville (autor de O Mar, vencedor do Booker Prize) exercitar seu talento ao tratar de ciúme e traição e como esses sentimentos interferem na criação artística e na própria vida. Sobre o assunto, o escritor respondeu por e-mail às seguintes perguntas.

Não me entenda mal, mas, por que os irlandeses não conseguem fugir do mar?

A resposta é simples. A Irlanda é uma ilha bem pequena: calcula-se que não há na Irlanda um ponto distante mais de 80 quilômetros da costa, se não me engano. Além disso, o mar é um dos fenômenos naturais mais misteriosos e, por isso, fonte de referência poética. É somente por estarmos tão acostumados a ele que deixamos de reconhecer o quanto é estranho, uma imensidão plana cobrindo tamanho pedaço do planeta. E, durante milênios, o oceano foi a única rota para fugir das limitações da vida irlandesa. Falando em exílios e exilados, você sabia que, depois de escrever Finnegan’s Wake, James Joyce pretendia escrever um livro a respeito do mar?

Poderia falar da importância da linguagem e das experiências eróticas de roubar e fazer arte?

Duas perguntas muito diferentes combinadas numa só. A fala – ou a linguagem – é o principal atributo humano, nossa maior dádiva dos deuses. É pela linguagem que afirmamos nossa humanidade; como observou Ezra Pound, é na linguagem que nossas leis são gravadas – e muito além delas, eu acrescentaria. Já disse muitas vezes, mas nunca é demais repetir, que a maior invenção da humanidade é a frase. Quanto ao erotismo de roubar: não sou nem nunca fui ladrão, mas imagino que roubar seja uma experiência vivamente erótica, já que o sexo é, ao menos da perspectiva masculina, uma forma de tomar – tenho certeza que serei muito criticado por dizê-lo, mas acredito que assim seja. O erotismo na criação de uma obra de arte é misterioso e repleto de nuances. Mas aquilo que o roubo e o fazer arte têm em comum, creio, é a invasão e usurpação da privacidade dos outros. Já vejo mais críticas sendo disparadas em minha direção…

O Violão Azul, às vezes, se assemelha a um romance distópico. Era essa sua intenção?

Certamente, não. Nesse romance, como em todos os meus outros livros, meu primeiro objetivo, além de produzir o tipo de livro que gostaria de ler, é proporcionar ao leitor algum deleite e uma sensação renovada de estar vivo neste mundo. Esses são os únicos deveres da arte, se é que a arte tem algum dever. Recentemente, eu e meu amigo (cineasta) Neil Jordan concordamos que a ideia do “romance distópico” deveria ser abolida completamente. O mundo é como é num determinado momento. Os personagens de 1984, de George Orwell, não tinham consciência de estarem vivendo em 1984, assim como os liliputianos não tinham consciência de habitarem as Viagens de Gulliver.

O livro é cheio de histórias, mas não há um arco maior nem uma narrativa única no sentido tradicional. Assim, qual é a importância da linguagem em relação à trama? Tem interesse no vocabulário?

Outra pergunta feita de partes distintas. Posso responder às primeiras duas partes com simplicidade: por acaso a vida tem “um arco maior nem uma narrativa única no sentido tradicional”? Não que eu saiba. Assim sendo, por que o romance seria diferente? Com relação ao vocabulário: um dos deveres do escritor, independentemente do que escreva, é preservar a riqueza da nossa linguagem. Os tiranos gostam da linguagem simples, “direta” e preferivelmente imprecisa, facilitando a divulgação de mentiras e a crença nelas.

A pintura é muito presente no livro. Você gostava de pintar na adolescência. Ainda teria interesse em pintar? Ou prefere escrever a respeito de pintar?

Logo descobri que não tinha nenhum talento para a pintura. Mas é claro que adoro os quadros, e fico infinitamente fascinado com a capacidade do pintor de criar a ilusão de um mundo tridimensional em um suporte bidimensional. Mas também adoro música, e a considero quase como um tipo de alquimia: como é possível que alguns pontos e traços distribuídos em cinco linhas sejam responsáveis por um barulho de maravilha tão transcendental? Todas as artes se combinam nas poucas glórias autênticas da vida.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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