O menino sempre olhava, entre intrigado e admirado, a sequência de números gravados no antebraço esquerdo do avô: 69752. O que seria aquilo? “É o número do meu telefone que tenho tatuado para não esquecer”, despistava o avô. E o garoto acreditou até se tornar adulto, quando finalmente associou aqueles algarismos à 2ª Guerra Mundial e ao campo de concentração de Auschwitz.

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Esse é o ponto de partida de O Boxeador Polaco, conto que inspira o título do livro de histórias curtas do guatemalteco Eduardo Halfon, publicado pela editora Rocco em sua coleção Otra Língua, determinada a revelar talentos da literatura latina.

E Halfon honra a tradição do selo – O Boxeador Polaco une contos aparentemente independentes, mas que podem ser lidos como um despretensioso romance, uma vez que todos giram em torno do boxeador polaco, homem que deu dicas preciosas ao avô do garoto, conselhos que lhe garantiram a vida na triagem do campo de concentração.

Mais que com a trama, Halfon preocupa-se com seus personagens e as delicadas incertezas que marcam sua rotina. Assim, a ausência de ação é plenamente compensada por um recorte precioso de um momento da vida. É tanto o caso do conto que empresta o título ao do livro como justamente o que abre o volume, Distante.

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Ali, um professor de literatura para adolescentes descobre um raro talento em uma turma amorfa, um rapaz de origem humilde que, além de revelar uma sensibilidade para interpretar textos, também é poeta talentoso. Em poucas páginas, Halfon discute arte e realidade com grande equilíbrio.

Você levou quatro anos para escrever O Boxeador Polaco. Será por destilar um incômodo insuportável em relação ao judaísmo?

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Foram na verdade quase seis anos para escrever esse relato de escassas 10 páginas. Meu avô me contou de sua experiência pela primeira vez em 2001. Falou muito. Talvez quatro ou cinco horas. De sua família, de quando os alemães o capturaram em novembro de 1939, de sua experiência nos diferentes campos de concentração. E também, em poucos minutos, me contou a história de um boxeador polonês. Soube imediatamente que essa era a história do meu avô, que era essa a história que ele estava me transmitindo como herança, e guardei-a. Durante anos, levei-a comigo por toda parte, escrevia fragmentos dela em outros contos e textos, sem jamais me atrever a contá-la por inteiro. Não sei por quê. Talvez por causa do meu incômodo em relação ao judaísmo, sim. Talvez por respeito ao meu avô. Talvez por medo de um tema tão imenso e tão trilhado quanto o Holocausto. Até que, dezesseis anos mais tarde, eu a escrevi.

O ponto nevrálgico do livro é a história do seu avô, depois de escapar de Auschwitz?

Esse é o ponto nevrálgico não somente do livro, mas de todo o meu projeto literário. Sombras dessa história já podiam ser detectadas nos livros que escrevi antes (durante os seis anos em que levei essa história comigo, sob o braço), e continuaram em livros que escrevi depois. Há dois contos em Boxeador cujas histórias logo continuei em dois romances curtos, La Pirueta e Monastério, que são essencialmente duas viagens: uma à Sérvia e outra a Israel. Meu novo livro, que será publicado em 2015, gira em torno de outra viagem, dessa vez à Polônia. Posso dizer que continuo metido nessa questão, nesse mesmo ponto nevrálgico, nessa mesma busca, naquele mesmo número verde tatuado no antebraço do meu avô.

Ele chegou a ler esse relato?

Os últimos anos do meu avô foram muito difíceis. Foi como se todo o peso do passado tivesse voltado a ele, toda a ansiedade e o terror da guerra. Ele não conseguia dormir. Delirava. Falava com os pais e irmãos, todos eles exterminados em campos de concentração. Acreditava que havia soldados da Gestapo no seu quarto, esperando para levá-lo. Finalmente morreu na madrugada de um sábado. Cheguei a vê-lo. O corpo pequeno e sem vida jazia na cama, coberto por um cobertor preto. No criado-mudo dele, ao lado de todas as pílulas e remédios, estava o meu livro.

Em Distante, Juan Kalel vê truncado seu futuro como economista e talvez também como poeta. É tão triste quanto a realidade que o inspira. Não há esperança? Será a literatura capaz de denunciar e dar visibilidade a essas realidades que outros negam?

Essa é a única esperança, não concorda? Não uma literatura comprometida ou política. Não uma literatura de panfletos ou denúncias. E sim uma literatura que possa tornar imediatamente visível aquilo que é invisível, que possa dar voz àqueles que, por algum motivo, tenham sido amordaçados.

A memória tem um papel central no livro. Será a memória a ferramenta principal da literatura?

Existe uma relação íntima entre ficção e memória. Uma relação quase recíproca. Há elementos da memória que são necessariamente literários ou fictícios, ou seja, elementos que vamos inventando e criando com o passar do tempo e que se convertem em parte essencial da nossa memória, da nossa realidade. Da mesma forma, há elementos da literatura que só podem surgir da memória. O escritor trabalha com a memória como um escultor manuseando a argila, até que dessa argila surge o literário.

Todas as histórias do livro estão estreitamente ligadas, podendo ser lidas como parte de um romance. Isso foi intencional?

Escrevo contos. Sou essencialmente um contista. Escrevo com a intensidade de um contista, e com a intencionalidade de um contista. Mas cada um dos meus contos vai formando parte de um todo, de um só esqueleto, de um ciclo narrativo que marca os tímidos passos de um mesmo narrador. Assim, meus livros podem ser lidos como um conjunto ou como um romance. E, por sua vez, todos esses livros formam parte de algo maior. Poderíamos dizer que, pouco a pouco, estou escrevendo um único livro, um só romance, composto de contos.

Sua obra propõe um intenso diálogo referencial com a narrativa de Ricardo Piglia.

Acredito que minha obra está em constante diálogo com a de outros escritores, como deveria ser. Em certos momentos, esse diálogo é com Piglia, mas, em outros, pode ser com Bolaño, Borges, Hemingway ou Chekhov. Depende do meu humor, e de minhas leituras, e especialmente do propósito daquilo que estou escrevendo. Às vezes, a influência de outros autores é evidente. Outras vezes, é invisível ou acidental. E há ainda outras vezes – minhas favoritas – em que simplesmente os copio mesmo.

Você se apresenta como um escritor deslocado, sem nacionalidade concreta.

Poderíamos dizer que pertence à mesma tradição de Nabokov e Sebald?

Há escritores que têm país natal e, independentemente de onde estejam, levam-no consigo. Há escritores que têm um país adotivo, como Nabokov nos Estados Unidos, ou Sebald na Inglaterra. Já eu estou mais para um apátrida. Não sinto nenhum patriotismo, nenhuma lealdade. Talvez por isso minha literatura viaje por toda parte. Talvez eu busque em minhas viagens um lugar idílico onde finalmente sentirei vontade de permanecer, criar raízes, envelhecer. Ou talvez eu busque fazer do mundo inteiro minha única pátria.