Dirigindo este filme na Espanha, o uruguaio Federico Veiroj faz um trabalho interessante sobre as relações entre fé e vida contemporânea. O Apóstata põe em cena o personagem Tamayo, que decide mudar de vida e opta por um ato simbólico de grande significação – renegar a fé católica. Não se trata apenas de deixar de frequentar a igreja aos domingos ou professar uma descrença esclarecida. Ele deseja submeter-se à cerimônia de saída definitiva da Igreja, como instituição. Para isso, vai atrás de um padre e pede que o ajude a localizar sua certidão de batismo, documento necessário para a apostasia.

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Seria, no entanto, um equívoco julgar que O Apóstata seja um filme apenas religioso. Ele é, também. Mas tem algumas implicações que vão além da crença ou da fé, ou, ainda, da dúvida que pode atingir o mais ferrenho dos crentes (e que, aliás, rondou mesmo a vida de homens santos).

Tamayo (Álvaro Ogalla) é um jovem do nosso tempo. Vive numa Espanha moderna e sofre com os problemas contemporâneos, as tentações e limitações numa cidade grande e cosmopolita. Inclusive os desafios do sexo e da profissão. O paradoxo é que o personagem parece em busca de um ponto de referência em meio às incertezas. Ora, existe maior referência que a da religião, sobretudo para quem tem fé e vive em um mundo laico?

O problema de Tamayo não é o da falta de fé e sim, talvez, o seu excesso. Por isso, Veiroj tem dito, sem qualquer intenção de paradoxo, que O Apóstata não é um filme anticlerical e nem faz apologia do abandono da religião. Talvez seja mesmo o contrário.

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Apenas coloca em crise a solução fácil de uma referência instituída quando um personagem deseja orientar-se em um mundo que lhe pede pensar por si mesmo. É quase como um rito de passagem, embora ele já esteja bem longe da adolescência. Mas, como se sabe, a adolescência é uma fase da vida que tem se tornado cada vez mais duradoura. Existem adolescentes de todas idades e alguns chegam à fase provecta sem terem ultrapassado essa etapa da vida. O mundo infantilizou-se. Tornou-se teen. Desse modo, não se estranha que um homem feito como o protagonista cisme que sua autonomia só será conquistada quando oficialmente se livrar da fé na qual foi criado.

Por que não abandoná-la em silêncio e viver a sua própria vida, sem normas e interferências que julga injustificáveis? Talvez porque precise desse rito de abandono para se sentir livre. Sem ele, Tamayo estaria entregue a si próprio, em pleno exercício da liberdade. E não precisamos ter lido Sartre para saber que é isso que muita gente não suporta.

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Já conhecemos por aqui um trabalho anterior de Veiroj, A Vida Útil, cujo “herói”, por assim dizer, é ninguém menos que um crítico de cinema e frequentador da Cinemateca Uruguaia. O papel é desempenhado por um crítico de verdade, o uruguaio Jorge Jelinek, que precisa encontrar outro sentido para sua existência depois que o cinema entra em crise. Como para muita gente, o cinema, mais que uma manifestação artística, é uma quase religião, não seria inadequado supor uma continuação entre os dois filmes.

Afinal, seres carentes que somos, vivemos em busca de pontos seguros, na religião ou fora dela. Desejamos tornarmo-nos autônomos, sem saber direito no que isso implica.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.