Reza a lenda que, em 1962, Federico Fellini vivia uma crise criativa. Aos 42 anos, era já um cineasta completamente consagrado, na Itália e no exterior. Assinara algumas obras-primas como A Estrada da Vida (1954) e A Doce Vida (1960), mas enfrentava um caos mental de alguém com quase tudo conquistado. Mas é justamente essa impotência imaginativa, comenta-se, que o levou a criar outro filme seminal, 8 ½, sobre um famoso cineasta, Guido Anselmi, cuja criatividade, tão saudada, está momentaneamente bloqueada.
Na luta para recuperar o vigor mental, Guido liberta suas fantasias, temores, dores e desejos ao unir real e imaginário, entrelaçando personagens em carne e osso (como sua mulher) com os resgatados pela memória afetiva (a mãe, a musa, a amante). Uma parede quase imaginária separa realidade do sonho.
Estreado em 1963, o longa faturou o Oscar de melhor produção estrangeira e inaugurou uma nova fase na carreira de Fellini, mais confiante em apostar na fantasia e no memorialismo. “É também um dos filmes em que Fellini mais expôs sua intimidade, inclusive escalando sua amante, Sandra Milo, justamente para o papel da amante”, conta o encenador brasileiro Charles Möeller, que se aprofundou em toda a obra do cineasta italiano para enfrentar um grande desafio: ao lado de Claudio Botelho, montar Nine, espetáculo da Broadway que estreia dia 23 no novíssimo Teatro Porto Seguro e com um subtítulo exclusivamente nacional: Um Musical Felliniano.
De fato, impossível dissociar Nine de Federico Fellini. Criado por Maury Yeston (compositor e letrista) e Arthur Kopit (autor do texto), o musical acompanha a crise criativa do famoso cineasta Guido Contini. Sem saber como iniciar seu próximo projeto, ele resolve fugir das tensões e passar alguns dias em um spa em Veneza. Lá, com a mente em completa ebulição, encontra todas as mulheres da vida: a mãe, a esposa, a amante, a prostituta, e a musa e a produtora de seus filmes. São momentos delirantes, em que a realidade se confunde com a fantasia e a memória.
Nine estreou em 1982, quando a Broadway passava por maus bocados, com a Times Square tomada por prostituição, drogas e violência. O cenário clean da peça, quase que apenas formado por cadeiras, revitalizou o gênero. “Foi uma ruptura: o espetáculo era cerebral e a Broadway se reinventou”, analisa Möeller.