“Quem era este homem capaz de compor uma música de tal modo complexa que nos deixa inteiramente medusados, e em outros momentos ritmada de modo tão irresistível que gostaríamos de nos levantar e dançar quando a escutamos, e em outros momentos ainda tão plena de emoção perturbadora que nos sentimos tocados no mais profundo de nosso ser?” O maestro inglês John Eliot Gardiner, 73 anos, levou duas décadas para responder a essa pergunta. O resultado está em Bach no Castelo do Céu (Music in the Castle of Heaven, ed. Knopf, disponível em ebook kindle). Ele buscou conhecer o homem por trás do compositor ao qual dedica sua vida desde a meninice em Dorset.
Música, para Gardiner, quer dizer Bach – e vice-versa. Suas cantatas, motetos, missas e paixões o acompanharam nos seus últimos 60 anos. Tanto que sua mais recente gravação, à frente do English Baroque Soloists, coro e orquestra Monteverdi, é a monumental Missa em Si Menor (selo SDG).
A originalidade do livro é nos revelar um outro Bach, de carne e osso, não o quase santo, ou mesmo deus da música. O menino órfão que sofreu bullying nas escolas de Eisenach e Ordruf. Gardiner descobriu documentos até agora inéditos que sugerem não só bullying em pleno século 18. “Rumores davam conta de ‘violências praticadas nos alunos’.” Por isso, “muitos pais mantinham seus filhos em casa por precaução”.
Em Eisenach, Bach faltou à escola por 96 dias, com medo do bullying. Essas “cicatrizes” o transformaram num sujeito briguento, rancoroso. Provas são a peruca que atirou num aluno incompetente em Leipzig; a briga com seus empregadores em Weimar, que provocou sua prisão por cinco semanas; e as constantes rusgas com os dirigentes municipais das cidades onde viveu e trabalhou.
Não por acaso, o livro mistura a biografia de Bach com uma disfarçada autobiografia. Gardiner é, com certeza, um dos maestros supremos na prática da música vocal barroca. Mas tem o outro lado. O musicólogo Stephen Walsh e o jornalista Peter Phillips anotaram a agressividade com que ele trata seus músicos. Recentemente, Phillips diz que Gardiner perdeu a paciência com um músico da London Symphony. Se usasse peruca como Bach, certamente a teria atirado no rapaz. Gardiner coloca em palavras o Bach que produz musicalmente. Desde a Deutsche
Grammophon entre 1989 e 2000, quando foi demitido de repente; e depois em seu próprio selo SDG – abreviatura da frase que Bach colocava ao final de seus manuscritos: Soli Deo Gloria. Mesmo já tendo gravado a obra vocal inteira de Bach, Gardiner diz que as pesquisas mudaram o modo como rege e concebe sua música.
Os diferenciais de seu Bach partem do seguinte credo: “Injetar paixão e expressividade na interpretação da música barroca vocal”. Ele se horroriza com o Bach “sem humor” de Karl Richter; e com a po(a)lidez do coro do King’s College, cujo mote segundo Gardiner era “jamais cantar tão forte que deixe de ser bonito”. E se pergunta: “Aonde estavam a alegria festiva e o espírito dessa música tão impregnada de ritmos dançantes?”. A resposta está em suas gravações sempre empenhadas, como a da Missa em Si Menor.