E, no quarto dia, fez-se a luz. Desde o começo do 32.º Festival de Gramado, a competição nacional vinha de mal a pior, a tal ponto que o concorrente de segunda-feira – O Quinze, de Jurandir Oliveira, honesto porém tosco – começou a assumir contornos de obra-prima. Na quinta-feira à noite, as coisas melhoraram bastante. As Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo, pode ter seus defeitos, mas já é um marco do cinema brasileiro. O catálogo do festival anuncia que Araújo, diretor do documentário A Negação do Brasil, conseguiu reunir o maior elenco negro da história do cinema no País. Talvez não seja. O elenco de Quilombo, de Cacá Diegues, também reunia a fina-flor dos atores afro-brasileiros, mas lá eles interagiam, pela própria natureza do drama, com o elenco de atores (e atrizes) brancos. Em As Filhas do Vento, os atores são quase todos negros e o que interessa é essa análise de relações familiares no quadro de uma cidade – Lavras Novas, em Minas – que carrega a memória da escravidão.
As Filhas do Vento narra uma história de família. Começa numa igreja, onde se realiza missa de corpo presente para um homem que morreu. Abre-se a porta e entram três mulheres. A mais velha dirige-se para o caixão e ignora a mulher de sua idade, que avança para ela. São irmãs, separadas por um mal-entendido que logo será explicado. Uma ficou na cidade mineira com o pai. A outra foi tentar a carreira de atriz. Léa Garcia e Ruth de Souza são as atrizes. Cada uma tem uma filha, com a qual a mãe não consegue se comunicar, Danielle Ornellas e Maria Ceiça. Elas se comunicam mais com as tias.
É uma história de amargura e ressentimento. Começa bem, tem um miolo um tanto problemático – com frases que revelam mais as opiniões do diretor do que das personagens – e termina bem. Joel Zito Araújo transformou-se, em pouco tempo, num dos mais importantes intelectuais afro-brasileiros. Seu livro A Negação do Brasil, que ele próprio transformou em filme, analisa a participação do negro no universo das telenovelas. O tema não deixa de estar presente no universo ficcional de As Filhas do Vento. A personagem de Ruth de Souza vira uma respeitada atriz de novelas (como ela realmente é). Por meio dela e da irmã – e das filhas – o diretor discute a condição da mulher negra. Falando sobre ela, discute o homem negro.