“Eu achava que de noite uns satanases entravam no meu quarto pra me atormentar. Isso até o dia que minha mãe me disse: ‘Cavalcanti é muito longe. Satanás não vem aqui, não.'” Morando e circulando a vida inteira nos subúrbios do Rio – Madureira, Piedade, Cascadura, Méier, Encantado… -, Anderson França, o Dinho, tem muitas histórias para contar sobre um Rio onde faz 40 graus e ainda fica longe da praia. O Rio do trem, da favela, da umbanda, do botequim, do samba, das festas de Cosme e Damião e de São Jorge. Dinho começou no Facebook, onde seus textos alcançam milhares de compartilhamentos, e acaba de estrear no mercado editorial, com Rio em Shamas (Objetiva).
A crônica que começa em Cavalcanti e desemboca no Carrefour de Del Castilho – “o mais perto que cheguei da França” – tem os ingredientes do melhor de Dinho, como é chamado desde antes de começar a trabalhar como porteiro, regente de coral, vendedor de plano de saúde, de persiana, de sanduíche natural, quentinha e camiseta, entre outros ofícios. Tem relatos pessoais, humor, crítica social, gírias, neologismos. Ao mesmo tempo em que enriquece as narrativas sobre a cidade, ele deixa clara a sensação de ser um “outsider” na zona sul turística e praiana.
“Não circulo pela zona sul. As pessoas te olham como alguém exótico, já cantam aquela música que fala ‘Madureiraaaa’ (‘O Meu Lugar’, de Arlindo Cruz). Todo mundo foi a Nova York, Alemanha, Amsterdã, qualquer café é R$ 10”, diz o autor, que tem 41 anos e não prevê uma longa carreira na literatura. “Não me considero escritor, não me preparei para isso. Nunca fui o aluno que escrevia bem, sou um cara raso que começou a escrever por acidente. Passei 40 anos calado”, conta.
Autor de roteiros para TV e cinema que também tratam do modo de viver do subúrbio ele foge de estereótipos e da pecha de representante do seu lugar. “Se o Gregório Duvivier não é o representante da zona sul, por que eu tenho que ser o do subúrbio? O Rio é do cacete, acontece muita coisa. Tem professor que me manda foto de aluno lendo meus textos. Isso no Rio, na zona sul de São Paulo, em periferia no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais. Os alunos querem autor vivo. Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade estão mortos. Por que só o inalcançável pode ser bom? Os alunos veem minha foto e dizem: ‘Caraca, mano, tu existe!'”, ressalta ele.
Dinho começou com um blog em 2009 para falar de assuntos ligados à segurança pública, mas foi aconselhado a “mudar de assunto” quando denunciou abusos policiais. Em 2011, criou a primeira agência de publicidade numa comunidade, a Dharma CC, no conjunto de favelas da Maré, na zona norte.
Dois anos depois, fundou a Universidade da Correria, que funciona num galpão no centro. Voltada a pequenos empreendedores de ramos como moda, marcenaria, fotografia e culinária, a iniciativa oferece quatro meses de aulas de gestão financeira e marketing, entre outras disciplinas de aplicação prática, e tem hoje quatro mil alunos e 200 negócios em atividade. “É a minha vida. Se você perguntar onde está o meu amor, é ali, e não na literatura.”
O primeiro texto viralizado (nove mil compartilhamentos) foi sobre a ida a um restaurante refinado, o Olympe, do chef francês-carioca Claude Troisgros. Era o aniversário de 40 anos de Dinho e seu estranhamento diante do prato, “boeuf de mignon com one thousands of sacanagens e molho de bagulets frescos”, foi o ponto de partida para uma longa conversa com Troisgros, que lhe ofereceu o jantar de cortesia, para seu alívio – “meu cartão do Bradesco gritava aleluia”.
Publicado na quarta-feira passada, dia 21, o último que fez sucesso foi sobre um contratempo na saúde. “Fui fazer exame de Doppler. Em Acari. Acari, da feira de. Da favela de. É, eu também não sabia que em Acari tinha exame de Doppler. Mas tem, do SUS, e eu acho que fazer Doppler é um avanço na minha vida, porque pobre só faz exame demissional”, descreve.
Aos 28 anos, Vitor Almeida transformou-se em outra referência de subúrbio no Facebook. Com 200 mil curtidas na rede social, o perfil “Suburbano da Depressão”, que desde 2012 ele mantém sozinho, rendeu o livro Suburbano da Depressão: Causos, Contos e Crônicas (Autografia), também recém-lançado.
Estudante de história, Almeida tem um estilo de humor mais escrachado. Ao relacionar os tipos com que convive, capricha nos detalhes: “Aquele coroa com barriga de cachorra grávida, estômago dilatado, que vai sem camisa pra rua, somente de bermuda cargo de elástico e sandália de pai de santo, boné escolhido aleatoriamente, cordão de algum santo católico, tatuagem disforme com a tinta verde de um desenho que um dia foi alguma coisa, que discute sobre o Campeonato Carioca da década de 70 na padaria: Patrimônio imaterial do subúrbio carioca”.
Também sabe ser crítico: “Quem não conhece a história do Rio, especialmente após 1889, acha que o que fazemos e escrevemos é puro recalque”, escreveu, sobre as tensões entre o Rio pobre e o Rio rico. “O subúrbio teve importância vital para a cidade, mas a história da cidade fala só do centro e da zona sul, muito pouco da zona norte e da zona oeste. Do subúrbio só se fala de violência e descaso”, critica Almeida, que nasceu entre a Penha e Olaria, na zona norte, e mora em Santa Cruz, na zona oeste.
Ele aproveitou um momento em que os bairros estavam em pauta, na esteira do sucesso das novelas Salve Jorge e Avenida Brasil, da TV Globo, e programas como o Vai Que Cola no Multishow, além de produções no cinema, para explorar o universo suburbano. “Nunca tive pretensão de ter 200 mil curtidas nem lançar livro, pensei que não ia dar em nada. Tudo aconteceu em um ano e meio. Escrevo como o povo fala, com as discordâncias verbais. Como futuro historiador, espero estar contribuindo para mostrar o que é o Rio em 2016.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.