Em Cannes, filme traz um motorista que usa a poesia contra a vida banal

E no quinto dia – domingo, 15 – chegou Jim Jarmusch. Um dos grandes autores independentes que irromperam no cinema norte-americano nos anos 1980, com filmes como Stranger Than Paradise e Down By Law, Jarmusch certamente seguia interessante, mas com altos e baixos. Há tempos não apresentava nada como Paterson. Seu novo longa cede com o estilo minimalista. Parece que não acontece nada. Acontece de tudo. Um motorista de ônibus de Paterson, New Jersey, observa o mundo e usa as horas vagas para se esgrimir com as palavras. Paterson, segundo Jarmusch, é o berço de grandes poetas como William Carlos Williams e Allen Ginsberg. Uma rápida pesquisa na rede aponta outras localidades onde eles nasceram, mas sempre em New Jersey. Pode ser uma liberdade poética, condizente com o protagonista, que quer ser poeta.

O filme desenrola-se durante uma semana. Paterson acorda sempre na mesma hora, faz o mesmo caminho até o trabalho e, depois, na direção do ônibus, percorre as mesmas ruas, as mesmas paradas. Poderia ser uma vida banal, se não fossem as poesias. São as armas de Paterson contra a banalização. Adam Driver, de volta do lado escuro da Força, é quem faz o papel. Nunca esteve melhor. É casado com a iraniana Golshifteh Farahani, a beleza em pessoa. Eles têm um cachorro, um buldogue chamado Marvin. Digamos que o júri presidido por George Miller não se encante com o filme nem lhe outorgue a Palma de Ouro. Afinal, ainda existe muita coisa a caminho.

Somente nesta terça, 17, teremos o concorrente brasileiro, Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, com Sonia Braga, e o novo Pedro Almodóvar, Julieta. Entre os filmes já exibidos, o alemão Toni Erdman, de Maren Ade, lidera os quadros de cotações dos críticos. Tudo isso é verdade, mas Paterson é especial – muito especial. Se não ganhar a Palme d’Or, que pelo menos ganhe, então, a Palme Dog. Marvin é decisivo na trama. Vai balançar o mundo ordenado do nosso poeta. Nada como um festival do porte de Cannes para celebrar o renascimento de um autor. Up and down. Jarmusch sobe, Jeff Nichols desce? Em Berlim, em fevereiro, ele participou da competição com Midnight Special, fantasia sobre um garoto conectado com as estrelas. Nichols concorre agora com Loving, sobre um casamento interracial na Virginia, nos anos 1950. O branco Joel Edgerton casa-se com a negra Ruth Negga. Com isso, desafiam, segundo o estatuto social da época, as leis de Deus e da comunidade. Mas a ‘América’ está mudando (com os Kennedys) e os Loving vão até a Suprema Corte. Fazem história.

O filme é sincero, bem-feito, mas tem esse lado, digamos, altruísta. Nichols já fez melhor, mas cria cenas interessantes. O advogado pergunta a Edgerton, o Sr. Loving, o que gostaria de dizer aos juízes da Suprema Corte para convencê-los de que seus filhos mestiços não são uma ameaça à ordem. A resposta é de uma candura exemplar.

Eryk Rocha, o filho de Glauber, mostrou na segunda, 16, em Cannes seu documentário Cinema Novo. O filme não é ‘sobre’ o movimento que revolucionou o cinema brasileiro nos anos 1960. É muito mais sobre uma geração que amava o cinema e o Brasil e enfrentou a ditadura cívico-militar e, dentro dela, o golpe do golpe, representado pela promulgação do AI-5. Eryk Rocha aproveitou a vitrine do maior festival do mundo para refletir em voz alta com seu público. “A América Latina vive sempre processos de interrupção e retomada institucionais. Nunca pensei que minha geração fosse ver essa nova interrupção.” Como o protagonista do filme de Jeff Nichols, teria o que dizer aos juízes da Suprema Corte brasileira.

Cinema Novo já ganhou visibilidade e elogios. Sílvia Cruz está feliz da vida. É a madrinha da distribuição independente no Brasil. Não representa pouco que Cinema Novo e Aquarius, os dois filmes brasileiros em Cannes, em 2016, estejam sendo distribuídos pela pequena grande companhia que ela criou – a Vitrine. “A parceria com Kleber já vem desde O Som ao Redor”, lembra. Nesta terça, 17, ela faz a montée des marches – o tapete vermelho – com o diretor, sua mulher e produtora, Émilie Lesclaux, e a estrela Sonia Braga, de volta à Croisette. A torcida é grande, há que admitir-se, por uma Palma do Brasil.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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