A eterna busca pela palavra – o dilema, que cerca qualquer escritor, deixou de ser um transtorno para se transformar em solução para Ignácio de Loyola Brandão. Convidado (na verdade, intimado) pelo diretor Sérgio Ferrara e pela artista plástica Maria Bonomi a escrever uma peça sobre Jorge Luis Borges, o autor viveu um dilema: como tratar do grande escritor argentino sem utilizar trechos de sua obra nem se basear em sua biografia? "A resposta tornou-se óbvia ao notar que a memória era um dos grandes assuntos tratados por Borges", conta Loyola, autor de "A Última Viagem de Borges", que estréia amanhã (25), para convidados, no Teatro Anchieta do Sesc Consolação.
A peça foi apresentada no Festival de Curitiba, onde lotou suas três sessões. Loyola, que estréia como dramaturgo, acompanhou atentamente a reação do público e até incorporou algumas sugestões, como a redução de alguns diálogos. "As pessoas entenderam bem o jogo entre realidade e ficção, típico de Borges, proposto por Loyola", comenta Ferrara que, junto de Maria Bonomi, concebeu a montagem seguindo preceitos clássicos de obras como "O Mágico de Oz" e "Alice no País das Maravilhas", ou seja, a viagem pelo mundo das perguntas não respondidas. "Como resultado, a imaginação brinca com a realidade."
"A Última Viagem de Borges" mostra a trajetória do escritor argentino (interpretado por Luís Damasceno) em busca da palavra perdida, a "mais perfeita das palavras". Para isso, ele evoca personagens de grandes histórias, como Sherazade (Flávia Pucci), Richard Francis Burton (Fernando Pavão), Funes (Olayr Coan) e um misterioso menino (Rodrigo Bolzan), e segue um longo percurso até a Biblioteca de Babel, onde se encontram todas as palavras existentes, que são rigidamente guardadas pelo Bibliotecário Imperfeito (Marco Antônio Pâmio). Com ele, Borges trava uma batalha verbal, carregada de ironia e artifícios. "Descobri o caminho da história ao me lembrar do filme "Fellini Oito e Meio", que mostra o bloqueio criativo sofrido por um diretor de cinema. Para Borges, o bloqueio representa a perda da palavra e da memória", comenta Loyola.
Como se trata de um jogo proposto por um escritor, a ação acontece em diversos mundos mas, curiosamente, jamais sai do limite do apartamento de Borges, em Buenos Aires. "A dramaturgia de Loyola não é realista, percorrendo outro caminho, recheado de duplos e espelhos, bem ao estilo borgiano", conta o diretor. Para isso, o cenário de Maria Bonomi é repleto de biombos sanfonados, que se locomovem em cena, jogando com o duplo, com labirintos e com espelhos. Ela lança mão também de projeções, com imagens de filmes e quadros, além de letras e palavras.
A versão que estréia amanhã foi a décima escrita por Loyola e todas se basearam na primeira, a mais extensa. "Quando comecei a escrever, não pensei em uma seqüência progressiva, mas em cenas isoladas." A partir dessa versão, Loyola, Ferrara e os atores foram lapidando o texto, em uma autêntica criação coletiva.
O texto também foi avaliado por Maria Kodama, viúva de Borges. Inicialmente interessada no projeto, ela surpreendeu ao pedir que se retirassem da peça seu nome e o do escritor. "Ela alegava que sua relação com Borges, que fora ‘mágica e profunda’ estava mal delineada", lembra Loyola. "Respondi que a peça não tratava disso mas da obsessão de um escritor." Por precaução, o sobrenome Kodama foi excluído da peça, mas o do escritor permaneceu – dois advogados especializados em direito autoral garantiram que o texto não denegria a imagem de Borges (ao contrário, enaltecia) e que as poucas citações de sua obra não são decisivas na estrutura da peça. Com isso, garantem legalmente a montagem.