Em busca da memória perdida

São Paulo – Sem memória não há salvação. E, se a memória real falta, o negócio é inventá-la. Essa é uma das idéias centrais, talvez a central, de Narradores de Javé ótimo filme de Eliane Caffé que estréia hoje nos cinemas. Javé fala de uma cidade imaginária, que precisa (re)inventar sua história coletiva para ser salva da inundação. Querem construir uma hidrelétrica no lugar e a região de Javé – com ela dentro – será alagada. Só escapa se for tombada pelo patrimônio histórico, e, para isso, precisa provar que merece esse status.

A história do reencontro de um povo com sua memória perdida nasceu das andanças de Lili Caffé pelo Vale do Jequetinhonha, onde filmou seu primeiro longa-metragem, Kenoma. Essa história de um homem que sonha com a utopia do moto-contínuo (José Dumont), levou-a a conversar com as pessoas dos lugarejos por onde passou. Viu a pobreza material das gentes. Viu sua riqueza espiritual, o artesanato, a criatividade e o prazer com que se entregavam à arte da narrativa.

De modo que, para dar vida ao seu filme, para encaixá-lo nesse desvão onde não existe a distinção entre a “alta” e a “baixa” culturas, Lili promoveu a integração entre seu elenco de atores profissionais e os habitantes da cidadezinha de Gameleira da Lapa, Bahia, onde ambientou a sua Javé. Desse encontro entre duas águas, que costumam ser artificialmente separadas, nasce a força de Narradores de Javé.

A história é a seguinte: em Javé existe um funcionário do correio, Biá (José Dumont), que teme perder o emprego, pois em terra de muitos analfabetos não se mandam nem se recebem cartas. Biá resolve suprir essa carência e escreve ele mesmo as cartas e as envia para os moradores. Como não consegue controlar o impulso à maledicência, enche as cartas de fofocas e intrigas. Quando a comunidade percebe o engodo, resolve expulsar Biá. Mas com a ameaça da hidrelétrica, ele, de inimigo, passa a ser um possível aliado da comunidade. Afinal, é o único letrado e, como já provou, com grande vocação de ficcionista.

Biá precisa inventar um passado mítico para Javé. Passa a entrevistar os moradores para escrever o livro. Quando os depoimentos não o convencem, ou quando os acha pífios, ele os melhora. Há versões conflitantes para a fundação da cidade e Biá as incorpora. Surge assim a idéia que a História seria apenas um conjunto de versões.

Há um tom de fábula embutido nessa pequena narrativa emblemática. Daí o clima onírico de muitas passagens, quando alguns moradores evocam a mitologia da fundação. Daí também o tom às vezes teatral, cênico, de algumas participações. Não chega a ser defeito. Não é defeito porque não há nenhum mandamento dizendo que todos os filmes precisam ser realistas.

Essa levada teatral de Javé tem momentos que lembram a antiga Commedia dell?Arte, na qual boa parte das situações e diálogos são criados pelos atores no momento. Nesse sentido, José Dumont, em um dos melhores papéis de sua carreira, tem importância fundamental. Nota-se que a diretora o soltou. Confiou em seu talento e capacidade de improvisação. Claro, Dumont tinha uma linha para atuar e a seguiu. Mas foi criando ao longo do caminho. Ao contar uma história séria, faz brilhar o improviso e a veia cômica. (LZO)da memória perdida

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