Parece que foi ontem. Mas está fazendo três décadas este ano que o compositor londrinense Arrigo Barnabé apareceu na cena musical brasileira com Clara Crocodilo e uma sutileza de beque de fazenda: ele arrebentou e estabeleceu novos critérios.
Clara Crocodilo não nasceu por caso, mesmo porque produto de técnica modal, não tinha como nascer por acaso, foi coisa de caso pensado, muito pensado.
O título do disco carrega a ambiguidade do nome feminino e sugere clareza ao mesmo tempo em que arrasta um nome masculino que evoca uma natureza áspera.
Antes deste disco inicial de 1980, no entanto, Arrigo já tinha deixado o seu cartão de apresentações em 1979, num festival universitário com a música Diversões Eletrônicas. Qualquer maluco chegado em música sacou na hora: “Tem bagulho bom aí”. Arrigo assombrou, encantou e de cara apontou um caminho radical para a música brasileira, que nos anos seguintes não foi seguido por herdeiros da mesma envergadura, por falta deles.
Claro que oportunistas de plantão existem e pegaram carona na nova onda: a banda Blitz, por exemplo, faturou uma bela grana pasteurizando conceitos introduzidos por Arrigo e sua turma na cena musical. No melhor estilo que os estúdios gostam, sem compromisso e dialogando com a ignorância musical da multidão.
O radicalismo de Arrigo pressupunha uma continuidade na linha evolutiva da música brasileira, que nos anos anteriores tinha passado por duas grandes revoluções, a bossa nova e o tropicalismo.
O problema é que ele foi radical de tal ordem, que sua boa nova não gerou sucessores. Ele mesmo saiu dos trilhos da música popular, se embrenhando num gênero que, por falta de definição imediata, poderia ser definido como erudito experimental.
Afinal de contas, se Arrigo evoca alguns bacanas da música brasileira, não é de forma tão intensa quanto sua proximidade com os conceitos de música erudita de vanguarda, da qual poderia ser visto no Brasil como um profeta influenciado pela teoria da série dos doze sons de Arnold Schoenberg, a maneira de Bela Bartok tratar o ritmo e o talento de Igor Stravinsky para assustar os ouvidos pouco educados.
Além disso, havia mais de História em Quadrinhos em sua música, como a fluência narrativa, que de rock. Ele deve mais ao brasileiro Luiz Gê e ao americano Will Eisner, embora músicas como Pô, Amar é Importante esteja mais na linha do rock, que a qualquer dinossauro roqueiro. Resumindo, Arrigo foi uma esfinge desafiando: “Decifra-me ou te devoro”. Ninguém decifrou e para não ser comido, saiu correndo.
Esta é a verdade. Ninguém na música brasileira conseguiu diálogo tão próximo e radical com a música erudita contemporânea, como Arrigo Barnabé. Ele pode ser definido como uma espécie nativa de George Gershwin, que também se deixou fascinar por Schoenberg e Stravinsky. Antes de Arrigo, somente Rogério Duprat em associação com os Mutantes durante a regência tropicalista imprimiu um sopro criativo tão vigoroso na música popular.
Arrigo foi adiante sob influência de música indiana, eletroacústica, eletrônica e outras, produzindo uma obra de estrutura modal. O seu objetivo era criar uma revolução auditiva, com a assimilação pelo grande público de dissonâncias, atonalismo e aquele chucrute dodecafônico.
Foi um moço bem intencionado, mas dá um trabalho danado explicar para um sujeito acostumado a comer ovo frito que ostra não é um prato nojento. Ainda assim, Arrigo gravou com fogo seu nome na história da música brasileira. E, depois dele, a mídia massacrante não deu espaço a mais ninguém. Se é que alguém se apresentou com alguma coisa nova.
O próprio Arrigo tinha noção de seu árido papel de nadar contra a corrente. Em 1981 ele profetizava: depois do tropicalismo, a próxima escala na música popular brasileira seria o atonalismo, uma vez que até então o pessoal chegou perto e não cruzou a fronteira.
Ele carregava influência de um Caetano Veloso do disco branco, por exemplo, e acreditou ser uma espécie de sucessor do tropi,calismo, ampliando ainda mais os horizontes sonoros abertos por aquele movimento.
No entanto, vinte anos depois admitiu que fora em frente, mas quando olhou para trás, o pessoal estava na velha trilha, do velho reco-reco. Pior, os estúdios e a mídia massacrante ditavam as regras de acordo com a necessidade do lucro.
Então, Arrigo admitiu que sua música tinha pouco com a música popular. Acabou compondo uma senda paralela, como, por exemplo, a música de inspiração medieval do baiano Elomar e de alguns outros não tão explosivos, porém tão originais e criativos quanto Arrigo, como é o caso de Walter Franco e principalmente Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti.
Entretanto, enquanto os dois últimos se aproximam de um jazz híbrido com outros ritmos, Arrigo tendia para uma ópera experimental, de natureza expressionista, em conluio com a arte gráfica.
Claro que o que está acima é apenas uma tentativa de entender o universo dissonante de Arrigo, já que a sua música parece resistir a enquadramento em qualquer categoria.
Um exemplo: em 1984, Tubarões Voadores foi eleito pela revista francesa Jazz Hot como um dos melhores do mundo na categoria jazz. Aliás, a galeria de prêmios que o compositor amealhou é de deixar mamãe orgulhosa.
O certo é que em 1980, há trinta anos, Arrigo ainda não sabia disso e estava a pleno vapor como uma locomotiva sonora no panorama da música brasileira, tornando-se um dos prógonos da década.
Na sequência de Clara Crocodilo veio Tubarões Voadores (1984), a bela trilha sonora do filme Cidade Oculta (1986), além de outros discos. E não parou, no entanto cada vez mais se afastando do popular e mergulhando no erudito, como atestam os trabalhos recentes Missa In Memorian Arthur Bispo do Rosário (2004) e Missa In Memorial Itamar Assumpção (2007).
Arrigo seduziu multidões, foi pop star na música e no cinema, atuando e produzindo trilhas sonoras. Trabalhou no interessante O Mágico Olho do Amor (1981), com Carla Camurati, no citado Cidade Oculta e Nem Tudo é Verdade, também de 1986, entre outros, em que interpreta Orson Wells.
Sua presença atraia, sua música desafiava. Foi um Rimbaud da música brasileira: jovem, criativo e radical, não cedeu aos cantos das sereias mercantis. Assim, coube a Arrigo dar o último suspiro do novo e criativo na música brasileira. Um trabalho que marcou época.
Mas, como diria Raul Seixas, a indústria também acabou vítima do próprio mecanismo que criou e os estúdios hoje estão perdidos e sem força para ditar qualquer rumo.
Quem manda é o turbilhão caótico da internet, de onde pode sair qualquer coisa. Há calma assustadora. Um ambiente ideal para aparecer, repentinamente, novos tubarões voadores!