A paraibana Elba Ramalho reina no forró, no frevo e em outros ritmos nordestinos por direitos adquiridos ao longo de 35 anos de carreira. A força de sua música está indiscutivelmente nessa matriz. Nada a impedia, portanto, de se enveredar mais uma vez por velhos caminhos. Mas, para o álbum Do Meu Olhar Pra Fora, o seu 33.º, lançado agora, Elba queria pisar em outros chãos. Não renegou seu Nordeste, claro, só que avançou em direções que lhe deram frio na barriga. Ela canta em francês, rememora Chico Science numa canção contundente do saudoso compositor manguebeat, se aproxima do fado, resgata o rock, balança ao som do reggae. E, ao longo das 12 faixas, há uma alternância entre os sons eletrônicos e orgânicos.

continua após a publicidade

“Queria me desacomodar, preciso parar de plagiar a mim mesma, acho que arriscar na sonoridade é uma consequência natural do trabalho de todo artista”, avalia a cantora. “Senão, eu poderia ter feito mais um disco de forró, só o trivial, ou então ter passado minha vida toda gravando Banho de Cheiro 2, 3, 4… Funciona e agrada. Mas acho que, mais no momento de maturidade, a gente se sente confortável para alçar novos voos. Evidentemente que já tenho minha história, mas você ouvir um disco meu e ver ‘puxa, Elba fez umas ousadias aqui’, isso, para mim, soa positivo.”

Os produtores Yuri Queiroga e Luã Mattar, filho de Elba, ajudaram nesse processo lhe propondo desafios. Sobrinho do compositor Lula Queiroga, parceiro musical de Lenine, Yuri já havia trabalhado com Elba na produção de seu disco Qual o Assunto Que Mais lhe Interessa?, de 2007. “Acompanhei os trabalhos dele, fui vendo como foi crescendo como produtor.” Já com o filho Luã, que estudou música na conceituada Berklee, nos EUA, é a primeira parceria. O convite partiu da própria mãe. Ele topou. E, então, iniciou-se uma reforma para a modernização do estúdio de Elba, em sua casa, no Rio, onde o disco foi gravado. “Se Luã sentiu algum receio, talvez tenha sido até por respeito, mas ele está muito preparado. As pessoas o conhecem pouco, mas, quando conhecem, se apaixonam.”

No disco de Elba, existe uma certa hegemonia pernambucana – o que não é de se espantar, já que ela é querida naquele Estado como se lá tivesse nascido. A começar pelo próprio Yuri, pernambucano, que foi mostrando a ela músicas de seus conterrâneos. Uma delas foi Risoflora, pinçada do álbum Da Lama ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi (1994). Conhecendo a canção original, de percussão forte, Elba achou que não conseguiria regravá-la. “Tenho intimidade com a obra de Chico, canto no carnaval do Recife, mas, quando ouvi Risoflora, eu falei: ‘Será?’. Sou provocada a encarar. Poucas cantoras brasileiras, acho que só eu e Cassia Eller, gravaram Chico Science.” Em sua versão, ainda que mantenha a interpretação visceral, Elba concede doçura à Risoflora.

continua após a publicidade

Em Nossa Senhora da Paz, dos também pernambucanos do Cordel do Fogo Encantado, ela, de certa forma, entra no campo da fé – algo que lhe é caro na vida – por meio da canção poética e não religiosa que, quando era tocada nos shows do Cordel, levava o público à catarse. “Era muito louco, aquela plateia ficava excitada, cantava junto com a banda. Isso é uma forma de rezar também hoje no mundo”, diz a cantora. Há ainda composição dos recifenses Lenine e Dudu Falcão, É o Que Me Interessa. Mas a presença pernambucana que mais emociona Elba neste trabalho é a de seu amigo Dominguinhos. Morto em 2013, o sanfoneiro deixou várias canções inéditas gravadas, em Fortaleza, à disposição da amiga cantora.

Após a morte do músico, ela foi atrás desse pequeno tesouro. Pegou para si duas canções, Olhando o Coração (parceria de Dominguinhos com Climério Ferreira) e o surpreendente fado Nos Ares de Lisboa – Um Passarinho Enganador (composta com Fausto Nilo). “Chorei muito quando as ouvi, porque era a voz de Dominguinhos, a sanfona de Dominguinhos. Ele é um compositor que, quando escuto, me causa sempre essa sensação de emoção.” Nos Ares de Lisboa – Um Passarinho Enganador concentra, na verdade, duas músicas: começa com o fado na voz da portuguesa Carminho e, depois, entra o sentimento mais nordestino no canto de Elba.

continua após a publicidade

Além dessas duas inéditas de Dominguinhos, a cantora traz para si a bela Contrato de Separação, composição dele e sua ex-mulher, Anastácia, já gravada por cantoras como Nana Caymmi e Zizi Possi. “Eu consertei uma falha que cometi há uns anos, quando fiz o disco Elba e Dominguinhos (2005). Ele me deu carta branca para que eu gravasse o que quisesse e esqueci de Contrato de Separação.” Essa canção ganhou o acordeom de Toninho Ferragutti, que tem um estilo próprio irretocável, mas que, aqui, num gesto de reverência, recria o universo de Dominguinhos. Ao time, juntam-se outros nomes, como DJ Dolores e Chico Cesar, autor do ‘baile perfumado’ Patchuli.

E, depois de muito tempo, desde La Vie En Rose, gravada no disco Felicidade Urgente, de 1991, por sugestão do produtor Nelson Motta, Elba volta a cantar em francês, em La Noyée, com participação de Marcelo Jeneci no piano, acordeom e cravo. E, de novo, ela acatou o desafio com temores, tal e qual aconteceu quando Motta a instigou. Chegou até a cogitar Chico Buarque para um dueto, mas o compositor não pôde por estar envolvido em seu livro. Ela resolveu, então, estudar a música e recebeu orientação de um ex-cônsul para ajustes de pronúncia. A cantora puxa mais para a interpretação boêmia de Serge Gainsbourg, autor da canção, do que para o canto entre sussurros de Carla Bruni. “É a Elba cantando em francês, com sotaque”, avisa. “Não é perfeito.”

Lados B

Elba Ramalho vai emendar o lançamento do disco Do Meu Olhar Pra Fora com a nova turnê, que passará em São Paulo, nos dias 24, 25 e 26 de abril, no Sesc Vila Mariana. Por isso, a cantora já pensa no repertório da apresentação. “Estou resgatando coisas que têm muito a ver com as músicas do novo disco, como, por exemplo, Caranguejo Dance, do Moraes Moreira, que gravei com ele e tem tudo a ver com Risoflora.” Outra que deve entrar é Nó Cego, do disco Capim do Vale (1980) e regravada em 1999 com Lenine no disco Solar. “Mas, lógico, vou deixar na manga De Volta Pro Meu Aconchego e Chão de Giz, que o público gosta.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.