Em Berlim, há três anos, falando com a reportagem sobre Under Electric Clouds, que foi lançado depois como Sob Nuvens Elétricas, o diretor Aleksei Guerman Jr. já estava pessimista com o futuro da Rússia. O filme havia sido muito bem recebido, venceu o prêmio de melhor contribuição artísticas, mas Guerman Jr. parecia imerso num dilema shakespeariano, ‘Ser ou não Ser’. “Falar sobre a Rússia hoje em dia não é mais retomar a velha conversa sobre nosso alcoolismo. O absolutismo, sim. Há uma crise imensa. Criou-se uma desigualdade social. Existem pessoas muito ricas, a corrupção é grande, a classe dirigente cultiva planos imperiais e isso estimula a paranoia.”
E Guerman Jr. prosseguia – “A questão essencial é aonde estamos indo. A questão não é mais a Rússia. É a Rússia e a América, numa nova Guerra Fria. Há uma corrida armamentista e a questão da defesa voltou a ser visceral, se é que alguma vez deixou de ser. Nesse quadro, o desejo de liberdade e independência das antigas repúblicas torna-se mais subversivo que nunca, e precisa ser esmagado pelo poder central”.
O cineasta poderia manter o mesmo discurso sobre seu novo longa, que estreou na quinta, 14, nos cinemas brasileiros. Dovlátov concorreu em Berlim, em feveriro, e Guerman Jr. recebeu de novo o prêmio à melhor contribuição artística. Não é frequente que filmes estrangeiros – exceto os blockbusters de Hollywood – entrem em cartaz no Brasil com essa velocidade, mas há uma explicação. O filme biografa o escritor Serguei Dovlátov, mas o faz de uma maneira muito particular, concentrando-se em apenas seis dias da vida do poeta e escritor. O ano é 1971 e, nesse momento, Dovlátov vive uma crise imensa. Não apenas ele. Um dos méritos de Aleksei é não se concentrar no indivíduo, mas fazer de seu filme um retrato geracional.
Por não pertencer à União dos Escritores Soviéticos, Dovlátov não pode ser publicado. É o preço que paga por ser dissidente, contrário ao regime. Ele não é o único nessa situação. Parte dos diálogos e das situações retratadas no filme saem de O Ofício e a novelas em duas partes, de 1985, está saindo simultaneamente no Brasil pela Kalinka, em tradução de Daniela Mountian e Yulia Mikaelian. Essa venda casada – filme e livro – foi que ajudou a apressar a estreia de Dovlátov. Só para efeito de comparação, Sob Nuvens Elétricas, em 2015, teve de esperar pela Mostra de São Paulo, quase no fim do ano, para pré-estrear. O livro tem um subtítulo – Uma Novela em Duas Partes. A primeira, O Livro Invisível, escrita no biênio 1975/76, documenta a luta do jovem escritor contra a burocracia. Ele quer ser publicado, não consegue.
O Livro Invisível descreve o protagonista como integrante da geração de escritores dos anos 1960 em Leningrado, atual São Petersburgo – Joseph Brodsky, Anatóli Náiman, Evguéni Rein, etc. A segunda parte, O Jornal Invisível, escrita quase dez anos depois, 1984/85, narra o início da vida de Dovlátov nos EUA, onde ele não apenas foi publicado como adquiriu notoriedade (sem renunciar à língua russa). Para seu filme, Guerman Jr. inspirou-se somente na primeira parte de O Ofício. De cara, Dovlátov se interroga – ‘Quem se interessaria por um escritor fracassado?’ E logo acrescenta mais elementos para o suposto desinteresse. Sua vida, aparentemente, é privada de tragicidade.
Goza de boa saúde, tem uma família que o ama e sustenta nos momentos de carência material. Tem mulheres, no plural, até um cachorro. Sem ser exatamente fiel à letra do livro, o filme dá conta da complexidade do personagem. Para isso, beneficia-se de um ator excepcional – o sérvio Milan Maric, que precisou ser dublado para o papel. Depois de muita procura, Guerman Jr. escolheu-o pelo físico (e pelo temperamento) para expressar o que para ele, desde Sob Nuvens Elétricas – outra história de rejeitados e desajustados -, já era uma tragédia russa. A rejeição dos grandes talentos, da própria identidade. A Rússia que rejeita a Rússia, como antes rejeitava a URSS.
O diretor concentra seu retrato nesses seis dias que não são épicos, talvez buscando a versão prosaica para os ‘dez dias que abalaram o mundo’, de John Reed, nos primórdios da revolução de 1917. Serguei ainda não é o escritor superstar em que se transformou após sua morte prematura (1941-1990). Ele se divide em soirées literárias e clubes de jazz, disputas verbais com a mulher (sobre o futuro divórcio) e passeios na neve com a filha. Sua vida está estagnada e só lhe resta produzir para o jornal da fábrica, que glorifica os ícones da sociedade soviética. Numa cena surreal, entrevista trabalhadores vestidos como Tolstoi, Puchkin e Dostoievski que só lhe dão respostas corretas. Esse tipo de surrealismo já havia nas belas imagens de Nuvens Elétricas. O tema de Dovlátov é a resistência. Não transigir com a própria integridade. Não escrever o que deseja a classe dirigente. Guerman Jr. vai ao ponto com outro filme admirável.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.