Ao ler o artigo de Silio Boccanera publicado neste caderno no dia 9 de junho, o qual refere-se ao fato de Dom Quixote ter sido eleito como melhor livro de todos os tempos, após uma eleição coordenada pelo Instituto Nobel e pelo Clube Norueguês do Livro, interessei-me por reafirmar ou mesmo acrescentar às virtudes dadas ao romance o quesito atualidade. Miguel de Cervantes, que morreu pobre e sem amigos, recolhido em um convento, não poderia imaginar que sua obra, publicada em 1605, fosse, ao longo dos séculos, servir de alicerce para centenas de pesquisas, debates, artigos, conferências, livros e mais livros. O autor de Dom Quixote, que nasceu no ano de 1547, na cidade castelhana de Alcalá de Henares, jamais poderia sonhar que as andanças de seu cavaleiro da triste figura fossem causar tamanho estrondo.
Dom Quixote é basicamente a história de um anti-herói. A personagem foi construída com a sucata dos personagens das novelas de cavalaria. E é assim mesmo que ele próprio se faz. Dom Quixote transpõe seu espaço de Fidalgo e se transforma no segundo personagem que é o Dom Quixote, cavaleiro. Deste modo, como se estivesse em um camarim: […] Primeiramente limpou as armas que tinham pertencido aos bisavôs e que, cobertas de ferrugem e mofo, havia longo tempo andavam esquecidas num canto[…]; […] Batizado o cavalo, com o nome tão a seu gosto, quis batizar-se a si próprio, no que pensou oito dias, ao cabo dos quais se passou a chamar Dom Quixote[…]. É, sem sombra de dúvida, a inserção de um personagem dentro do outro.
Essa duplicidade justifica-se com o estado da loucura. Isto é, aqui se tem o Fidalgo e fazendeiro que depois de ler muitos livros sobre cavalaria enlouqueceu e transformou-se em Dom Quixote. Portanto, o Fidalgo é louco. Dom Quixote não. Ele é um cavaleiro lúcido dentro do que ele próprio estabeleceu como seu mundo. O mundo da aventura.
É bastante promissor esse debate entre lucidez e loucura dentro da própria obra, que diversifica essa característica quando permite a participação de outros personagens loucos ou marginalizados.
Além desses aspectos, o que mais poderia ser apoiado e reiterado em relação a Dom Quixote é o fato de que a sua temática é contemporânea. Atual demais, tanto que vai além do presente com certeza. Ou seja, o Cavaleiro da Triste Figura é o enviado honorário que trouxe a boa nova metaficcional. Assim, transborda metaficção, atingindo tudo que veio depois em termos de romance. Lembrando sempre que a metaficção, isto é, a sugestão do desvendamento dos mistérios do processo de criação literária, tem presença expressiva em romances considerados pós-modernos.
Temos a indicação desse aspecto, muito explicitamente até, além de em outros trechos, no prólogo do primeiro volume, quando o suposto autor/narrador diz: “Podes crer-me, desocupado leitor e não preciso jurar, que eu quisera fosse esse livro, como filho, que é do entendimento, o mais formoso galhardo e discreto que se pudera imaginar”[…]; […] O que te sei dizer, na verdade, é que se custou-me algum trabalho compô-la, nenhum foi maior que o de fazer este prefácio, que estás lendo[…].
O mais curioso desse admirável prólogo é que o suposto narrador/autor pede ajuda a um amigo para escrever o romance. Esse conselheiro fornece as orientações básicas e oferece a receita ideal para o sucesso. Este é o maior desafio de Dom Quixote, que surgiu com o objetivo de, assim como consta no prólogo “[…] desfazer a autoridade e valia que o mundo e o vulgo emprestam aos livros de cavalarias […] . Assim, como encontrar leitores que se interessem por um arremedo de cavaleiro? Como fazer com que alguém dê atenção a um herói velho, maluco e sem nenhuma virtude física? Sim porque Dom Quixote é o avesso do herói canonizado naquele período. Significa que o romance também discute o ritual de canonização dos personagens de novelas de cavalaria.
Com certeza, além desses pontos, há muitos outros que podem ser explorados em Dom Quixote, novelo sem fim. Um complexo emaranhado metaficcional, além de, obviamente, abordar as vicissitudes humanas; nossas fraquezas, nossa força e coragem. Ao final, há muitas coisas mais para dizer sobre a sua permanente invencibilidade, mas, sobre isso, é fascinante ver o que o próprio Dom Quixote diz: […] Ditosa idade e século ditoso aquele em que sairão à luz as célebres façanhas minhas, dignas de talhar-se em bronzes, esculpir-se em mármores e pintar-se em quadros, para serem lembradas no futuro[…]. Ainda sobre Dom Quixote, é importante informar que a Editora 34 vai lançar em outubro aquela que promete ser a tradução mais fiel das célebres aventuras do personagem de Miguel de Cervantes.
Maria Helena de Moura Arias
é jornalista e mestre em Literatura pela Universidade Estadual de Londrina.