Carlos Drummond de Andrade detestava ser entrevistado por repórter que não conhecesse em detalhes sua obra, sentimento compartilhado com João Cabral de Melo Neto, que respondia grosseiramente às perguntas que considerava vazias. Os dois poetas também temiam a deformação de seu pensamento, tanto a involuntária como a propositada, quando liam a entrevista publicada.
?Mesmo assim, ao longo de suas carreiras, eles desenvolveram uma relação de amor e reserva com a imprensa?, comenta o ensaísta Fábio Lucas que, durante 30 anos, acumulou material jornalístico que enfocasse o trabalho de Drummond e João Cabral – resenhas, entrevistas, artigos. Depois de analisar todos os recortes, Lucas escreveu o livro O Poeta e a Mídia (144 páginas, R$ 20), recém lançado pela editora Senac de São Paulo e que trata justamente dessa delicada relação.
Uma das conclusões: apesar do convívio tumultuado, a imprensa teve papel decisivo na produção dos dois poetas. ?Além de buscarem inspiração no noticiário diário, tanto Drummond como João Cabral incorporaram ao ?eu poético? o leitor implícito, aquele a quem se dirigem através do veículo mais corriqueiro: o jornal?, afirma Lucas. ?Drummond, aliás, sabia que o material que publicava na mídia acabaria sendo publicado em livro?.
A relação do poeta mineiro com a imprensa sempre foi próxima. Segundo suas próprias palavras: ?Fui jornalista desde rapazinho, desde estudante, e é aí que eu me sinto muito bem, muito à vontade?. E continua: ?Fui chefe de redação de um jornal em Minas e redator de três outros jornais. Então, a minha vocação é mesmo para o jornal?.
Era por meio dessa relação que Drummond buscava contato com seus leitores. Tímido, ele dizia que sua aversão em dar entrevistas era compensada pelas colunas que mantinha em diversos jornais – ali, o poeta não se furtava de tratar de assuntos que lhe pareciam de interesse geral. Assim, em crônicas que depois seriam reunidas em livro, ele contestou a inundação das Sete Quedas, além de protestar contra a poluição do Rio Tietê e a destruição do São Francisco. ?Drummond e João Cabral buscavam uma relação mais próxima com a imprensa, pois era uma forma de imortalizar seus escritos?, comenta Fábio Lucas.
O mineiro também aproveitava as raras entrevistas (suas conversas com os jornalistas só se tornaram mais intensas depois que completou 80 anos, em 1982) para explicar a origem de seus versos mais famosos. Ao jornal Leia, por exemplo, ele contou, em 1985, como criou o famoso refrão ?E agora, José??. Segundo o poeta, então moço e vivendo ?um estado de dor de corno profundo? ele, para aplacar a dor, começou a escrever: ?E agora José/ E agora Raimundo/ E agora Joaquim?. Depois, analisando mais friamente, decidiu concentrar em um só nome e escolheu José, pois considerava mais simples.
Acidente
?Pode parecer que a poesia era um acidente na carreira de Drummond, mas, na verdade, era inerente a ele?, comenta Lucas, lembrando que o aspecto prosaico da poesia de Drummond agradava muito a João Cabral. ?O poeta itabirano ensinou-o o esvaziamento da musicalidade e da métrica como fatores indispensáveis para a elaboração poética. Assim, ele se credenciou a fugir do acento ?poético? convencional e a buscar na ?prosa? as credenciais para a nova poesia?.
Engajamento e versos ?para tropeçar?
Em entrevistas, João Cabral demonstrava seu assombro não pelo assunto nem pela ironia dos versos de Drummond, mas por ?aquela dicção áspera, próxima da prosa?. ?Como minha poesia não tinha nenhuma melodia, nenhuma música, compreendi: era possível fazer poesia sem essas coisas?, disse. João Cabral sempre confessou sua propensão para a crítica, desde o início da vida literária. Antes da descoberta da poesia de Drummond, portanto, julgava-se incapaz de fazer poesia, tal a dissonância de seu espírito com o que se apresentava como poesia nos livros didáticos.
João Cabral revelava também opiniões acaloradas sobre engajamento político. À revista Nossa América, ele afirmou, referindo-se à América Latina: ?A literatura brasileira é a que sente menos reflexos políticos, porque o brasileiro não se interessa muito pela História?. Adiante, indagado sobre se se considerava um autor engajado, respondeu que nenhum autor da América Latina poderia escrever sem engajamento. ?A realidade aqui é tão dolorosa que, se você fala da realidade, forçosamente está fazendo uma denúncia?.
O poeta também não buscava uma aceitação fácil do leitor, pois dizia não criar poemas cantados, feitos para embalar. ?Eu procuro uma linguagem em que o leitor tropece, não uma linguagem em que ele deslize?, disse a José Geraldo Couto, na Folha de S.Paulo. O processo criativo, aliás, sempre foi debatido pelos dois poetas em conversas com os jornalistas. Drummond, por exemplo, dizia que jamais entrava em transe ou em estado de êxtase para criar seus poemas. ?Geralmente, a idéia vem à cabeça em um ou dois versos?, afirmou. ?Quando estou escrevendo poesia, sinto uma certa emoção, como que um certo calor, como se a minha temperatura elevasse. Mas não é transe. Estou vendo as palavras que estou empregando, estou articulando como uma pessoa que está querendo fabricar alguma coisa. É um estado de alerta muito especial, que depois passa?.
João Cabral, por outro lado, baseava sua poesia em inspirações visuais. ?Sempre achei que a linguagem, quanto mais concreta, mais poética?, disse para a Nossa América. ?Palavras como melancolia, amor, cada pessoa entende de uma maneira. Se você usar palavras como maçã, pedra ou cadeira, elas evocam imediatamente ao leitor uma reação sensorial. A poesia brasileira é muito derramada e procuro reagir a isso?. É o que se percebe, entre outros trabalhos, em Pede-me um Poema, texto não incluído na Obra Completa de João Cabral, mas reproduzido por Fábio Lucas em seu livro: ?Um poema se faz vendo,/ um poema se faz para a vista,/ como fazer o poema ditado/ sem vê-lo na folha inscrita??.
O maior
Entre tantas diferenças, Drummond e João Cabral reagiam de forma única à questão proposta pela imprensa sobre quem era, entre eles, o maior poeta brasileiro. ?Eles sempre rebateram qualquer polêmica, lembrando, além de seus nomes, o de outros grandes poetas como Manuel Bandeira?, comenta Fábio Lucas. ?Na verdade, esse foi um jornalismo sensacionalista, pois a obra de um poeta não existia em oposição à outra.?
O ensaísta observa que João Cabral sempre levantava a questão aos interlocutores com quem se sentia mais à vontade. ?Com isso, quem realmente ficava pouco à vontade era a pessoa para quem a pergunta era dirigida?, conta Lucas, que manteve com o poeta pernambucano momentos de grande descontração. Ele se recorda que, independentemente da resposta, João Cabral gostava de encerrar o assunto dizendo: ?Carlos Drummond é um homem estupendo?.
