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‘Dois Irmãos’ reverbera fim da utopia brasileira

Terminada a minissérie Dois Irmãos, acho que já pode ser considerada um marco de qualidade na TV aberta brasileira.

Já conhecíamos há muito a excelência do texto do escritor Milton Hatoum. O romance agora é recriado no roteiro de Maria Camargo e na direção de Luiz Fernando Carvalho. Com as devidas adaptações, Maria optou por uma transcrição fiel. Já Luiz Fernando acentuou o tom paroxístico de algumas partes do relato e o espraiou para a história toda. Foi barroco como costuma ser, pois é seu estilo. Desse modo criou quase uma ópera familiar de proporções bíblicas, em que o ódio entre os gêmeos acende o fogo que a tudo e todos consome.

Não se pode dizer que a logística de tal produção seja simples. Espichada no tempo, engloba três gerações. Desse modo, os personagens têm de ganhar vários intérpretes. Halim, o patriarca, é vivido por Bruno Anacleto, Antonio Calloni e Antonio Fagundes. A mãe, Zana, por Gabriella Mustafá, Juliana Paes e Eliane Giardini. Os gêmeos, por Lorenzo Rocha, Matheus Abreu e Cauã Reymond.

A narrativa em off, na voz de Irandhir Santos, vai costurando acontecimentos e empresta tom reflexivo a uma trama sempre pontuada pela paixão e pelo destempero. É como se visse tudo à distância, porém conservando o calor dos afetos em seu relato. Somente depois de passado o devido tempo encontram-se as palavras justas para expressar aquilo que, no momento em que se vive, é apenas paixão, confusão, dor, violência. É esse o ponto de vista do escritor. Mais tarde, Irandhir entrará em cena como personagem, participando da ação sem perder a função de narrador.

Seria preciso lembrar que o drama familiar de Dois Irmãos não se passa no vácuo. A família evolui junto com os acontecimentos do País e do mundo. O pequeno negócio de Halim torna-se uma venda bem-sucedida quando o ciclo da borracha enche a cidade de dinheiro. Ao mesmo tempo, e pelo mesmo processo, Manaus vai se degradando. As pessoas vão chegando e amontoando-se em palafitas pela periferia.

Alguns capítulos sobressaíram-se, como o da eclosão do golpe de 1964. É emocionante, mas não apenas. A partir dele, evidencia-se a tessitura histórica e nota-se que a trama não fala apenas de um núcleo familiar, embora possa ser lida nessa primeira camada, mas a tragédia do País pode, de certa forma, ser acompanhada pela rivalidade sem remissão entre Omar e Yaqub. A polarização suicida a que chegamos, o vislumbre de um futuro promissor que se revela apenas ilusório, a falta de projeto, a decadência sem apelação – tudo reverbera nessa história de amor e ódio.

Pode-se então dizer que o romance de Hatoum, lançado em 2000, seria premonitório, enquanto a versão atualizada na minissérie bebe direto no desalento nacional contemporâneo. Numa linha do romance, o narrador escreve “E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor, dissolvia-se no mormaço amazônico”. É lindo, e é triste, porque o “mormaço” não é exclusividade de uma região do País.

Pequenos problemas (de tom, de dicção, de ritmo) não comprometeram a grandeza da série e sua ambição de prestar-se a camadas de leitura que vão do imediato ao profundo. Uma história bem contada fala de si e também de outras coisas. Esta nos falou do Brasil, de sua utopia falhada de grande nação multiétnica, sensual e feliz. Um fino biscoito oferecido ao público, e que vai deixar saudades. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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