Não há som nenhum no sertão de Dominguinhos. Um pião gira no chão de terra até que aparecem os primeiros ruídos. Um boiadeiro canta, uma ave bate as asas. O pião retorna. É uma imensidão de sol e silêncio que abrem o documentário sobre Dominguinhos. Uma solidão que ficou com ele até o final da vida, estivesse na festa dos vitoriosos que levam prêmios Grammy para casa e na colheita do feijão com o pai, nas terras de Garanhuns.
Quando a música aparece, ela vem em turbilhão. Um Dominguinhos de cabeça baixa, de pé, à frente de um grupo, tocando sua sanfona como se estivesse em transe. De olhos fechados, transpassa dedos uns sobre os outros como se tivessem vida própria, como se nem dos comandos do cérebro precisassem.
É o próprio músico quem narra sua história. Seu Domingos fala do pai que já tocava na roça, lembra de sua sanfoninha de 8 baixos e do primeiro grupo que formou com dois irmãos no Nordeste, quando tinha 8 anos. Conta das brincadeiras e dos passatempos. “Eu não matava nem passarinho, por pena.” A mãe, alagoana filha de índios como o pai, teve 16 filhos, muitos dos quais “iam morrendo” e sendo enterrados em caixõezinhos que o pai já construía como um especialista.
Seu Luiz, Luiz Gonzaga, já era rei quando viu o menino pelos anos de 1946, 1947. Como fazia quando apostava em um pirralho com jeito de gente, deu a ele 300 mil réis e sua bênção. “Passamos três ou quatro meses com esse dinheiro”, lembra Domingos. Logo, é Domingos, pouco tempo depois de aposentar o apelido Nenê, quem está acompanhando o próprio Gonzaga. “O caminho de todo sanfoneiro era Luiz Gonzaga, não tinha outro.” Dominguinhos o segue no sucesso, e aparece em programas de TV desafiando o mestre nas mãos e nos pés, com um duelo de xaxado.
O sanfoneiro chega ao Rio de Janeiro de Garanhuns depois de uma saga de 11 dias na carroça de um caminhão. Já estava a mil com a primeira formação do Trio Nordestino quando recebeu um telegrama da morena Janete. “Venha pra casar, eu tô grávida.” Aos 17 anos, Domingos virava pai de família. E seu padrinho tinha que ser Luiz Gonzaga.
Seu Luiz recebeu o sanfoneiro em casa sem saber do assunto. “Eu queria que o senhor fosse meu padrinho de casamento.” Só quem viu Gonzaga fora do eixo pode descrever o que era aquilo. O homem bravo era o cão, virava o desafeto do avesso e botava até Lampião pra correr. Foi o que aconteceu com Dominguinhos. “Se mande, vá-se embora, cabra safado. Com 17 anos vai casar? Você não existe mais pra mim.” Depois de cinco dias, o telefone de Domingos tocou. Era o futuro compadre. “Eu quero ser o seu padrinho.”
A história segue na voz do sanfoneiro e nas imagens de encontros em estúdios, alguns dos quais aproveitados de registros para a da websérie feita antes do documentário. Nana Caymmi não consegue cantar afinada Contrato de Separação. Em frente a um Dominguinhos debilitado, ela chora sem se conter, mas segue em frente.
Na noite de segunda-feira, a sessão de pré-estreia era vista por Guadalupe e por Liv, ex-mulher e filha de Domingos. Suas presenças deixavam mais curiosa as cenas em que o sanfoneiro falava de seus casamentos. Sobre Anastácia, segunda mulher do músico depois de Janete, ele diz: “É minha maior parceira, fizemos juntos umas 210 músicas fora outras que ela queimou.” É verdade. Depois que Domingos se foi com a bela Guadalupe, Anastácia fez uma fogueira para queimar todas as fitas nas quais havia gravado as criações do músico para suas letras. “O negócio da gente era mais música mesmo”, diz Domingos. Guadalupe deve ter vibrado.
Domingos, estudado em escolas de jazz, esmiuçado por músicos eruditos, jamais estudou partitura. Tentou fazer isso, mas abandonou as aulas “porque os livros não tinha figurinhas.” Já consagrado, fora da sombra do Rei do Baião, foi com Gal Costa fazer shows pelo país por dois anos, acompanhado por Toninho Horta na guitarra e Robertinho Silva na bateria. “Eu já estava me sentindo um sanfoneiro pop, já estava com o cabelão black.” Quando chegou 1978, veio morar em São Paulo e sentiu aflorar a solidão do sertão que havia em seu peito. Dominguinhos era um solitário, como ele mesmo diz.
Seus olhos enxiam de água depressa, sobretudo depois que ele começou seu tratamento contra o câncer. Em uma noite, deixou o quarto do hospital com seu chapéu de vaqueiro, apertou o botão do elevador e fez o nome do pai. Chegou ao teatro no qual a Orquestra Jazz Sinfônica o esperava e sentou-se para tocar De Volta pro Aconchego. Quando sentiu os arranjos sinfônicos atravessando seu peito, não se conteve e chorou uma lágrima graúda, como se soubesse que, ali, era a hora de se despedir. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.