John Turturro, o ator e diretor ítalo-americano, dá uma de jardineiro e cultiva suas raízes peninsulares com “Passione”, documentário sobre a canção napolitana, que está em cartaz. Turturro é descendente de sicilianos e de bareses, mas foi encontrar na turbulenta Nápoles o epicentro para cultivar sua italianidade.
De saída, deve-se dizer que, quem espera um filme tradicional sobre o tema, uma espécie de coletânea do cancioneiro meridional, pode se decepcionar um pouco. Turturro sai em busca daquilo que é bastante conhecido na canção de Nápoles (não faltam nem mesmo os clássicos “O Sole Mio”, “Marechiare” e “Catarì”) mas busca, também, e talvez em especial, a maneira como essa história musical sobrevive, avança, se mescla e se transmuta. Até como estratégia para atravessar o tempo e conquistar novos seguidores.
Desse modo, ao mesmo tempo em que fala de (e mostra e ouve) Totò, o impagável ator cômico e autor de um clássico do gênero, “Malafemmena”, veem-se na tela muitos jovens que praticam as canções e a elas se entregam de maneira devota. Jovens e moças belíssimas, que cantam e dançam a tradição de modo a explicitar suas relações com a chama do flamenco e, às vezes, com a melancolia do fado, como no caso da cantora Mísia.
A paisagem de Nápoles está lá, com o Vesúvio ao fundo, alguns prédios decadentes, os scugnizzi (pivetes), roupas penduradas entre os apartamentos, o mar magnífico. Nápoles é encantadora não apenas porque é bela, mas porque é diversa. Rica e pobre, opulenta e decrépita. Multicultural e multirracial. Alguns personagens se destacam nesse cadinho, como o cantor e saxofonista James Senese, italiano, negro, fruto da relação entre um soldado americano e uma napolitana. Coisas da guerra. Mas Nápoles é essa convulsão histórica permanente, invadida em sucessivas levas por árabes, por normandos, por todo mundo. Sua vitalidade vem daí. Sua música, idem. É romântica, fala dos males de amor, mas o seu é um romantismo selvagem, forjado por essas mil influências.
Compreende-se, em vista dessa riqueza, que artistas como Massimo Ranieri, Peppe Barra e Fausto Cigliano se empenhem em zelar pelo legado. Compreende-se também que atraia os mais jovens, como Pietra Montecorvino e Mina, que se entregam de corpo e alma a canções tão pungentes e viscerais. Mas há também a reciclagem e a fusão empreendidas por artistas como Max Casella, Raiz e a tunisiana M’Barka Ben Taleb, que tomam as canções originais e lhes dão outra roupa e dimensão. Às vezes funciona bem; noutras, tem-se nostalgia da forma de interpretação original, consagrada e decantada por mais de um século de tradição, que vem de Caruso a Tito Schipa.
Aliás, um dos momentos mais divertidos é uma animada polêmica entre especialistas opondo defensores de Caruso e do pioneiro Fernando de Lucia. Um Fla-Flu à napolitana, que atravessa séculos. Uma rara unanimidade (ou quase, já que em Nápoles são difíceis os acordos) é Sergio Bruni (1921-2003), apontado pela maioria como o grande intérprete do gênero. Outra muito citada é a poderosa Angela Luce.
O resultado disso tudo é um filme que, longe de perfeito, é divertido, íntegro, emocionante. A ser saboreado. Seria ainda melhor se trouxesse as legendas das canções. Elas compõem uma narrativa na qual o filme mergulha. Infelizmente, privativa dos que conseguem decifrar o sonoro dialeto napolitano. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.