Laerte-se começa com uma hesitação de Laerte Coutinho. As diretoras do documentário, Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum, acham importante que as entrevistas com a cartunista para a produção sejam feitas na casa dela. Laerte pede mais tempo: ainda não está à vontade para gravar lá. Elas já estão há tempos nessa negociação. Numa troca de e-mails, Eliane acaba a convencendo. “Minha porção exibida falou mais alto (risos)”, graceja Laerte, em conversa com a imprensa, em São Paulo, para divulgar o documentário – o primeiro da Netflix original do País, produzido pela Tru3Lab -, que entra nesta sexta, 19, no serviço de TV por streaming no Brasil e em mais de 190 países.

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“A hesitação já é de outra etapa. A Laerte aceitou fazer o documentário”, emenda Eliane. “Mas tinha uma questão que aparece no início do filme que é essa hesitação, que é a questão com a casa. A gente levou quase um ano para a Laerte nos receber, e isso nos deu uma pista para entender os caminhos que tínhamos de trilhar nesse documentário, porque a Laerte estava fazendo toda essa reflexão publicamente, tinha feito fotos nuas, ou seja, ela já estava exposta.”

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Para Eliane, elas precisavam buscar uma outra ‘nudez’. “A gente entendeu ali, nessa dificuldade com a casa, que o documentário ia acontecer mesmo no momento em que a gente entrasse nessa casa, que, de certa maneira, é uma casa-corpo: as coisas vão acontecendo um pouco juntas. Essas reflexões, eu e a Lygia íamos fazendo a todo tempo. A gente foi aberta, e com essa ideia de seguir as interrogações, as pistas, mas sempre refletindo sobre o que a gente estava escutando.” Lygia lembra que elas fizeram um filme que estava acontecendo na frente delas. “Não era um documentário em que você faz uma pesquisa, traça uma pauta. Obviamente todo documentário depois te traz coisas novas, esse era 100% novo”, observa ela.

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Enquanto as diretoras registravam os pensamentos da Laerte sobre questões de gênero, sexualidade, entre outros temas, e como tudo isso está inserido no seu dia a dia, de trabalho, no convívio com a família, a casa da cartunista passava por uma reforma. Uma sintonia simbólica: tanto Laerte quanto seu lar passavam por um momento de transformação – não de reconstrução. Sua casa talvez já esteja finalizada, mas a própria Laerte avalia sua vivência como transgênero como algo pelo qual ainda passa. “É um processo”, afirma ela. “Em princípio, acho que as pessoas não têm nada a ver com isso, mas elas têm, sim, a ver com isso. A minha cultura, a minha sociedade, o meu tempo têm a ver com isso, sim, e acho legal que haja uma curiosidade, uma inquietação, e que seja feita também uma abordagem disso como eu estou fazendo.”

Além de codiretora, Eliane Brum também conduz as entrevistas com Laerte diante da câmera. A jornalista e escritora tem notória experiência em lidar com temas que precisam ser tratados com delicadeza. E, com Laerte, não é diferente. Eliane lança perguntas, muitas vezes de cunho mais íntimo, e automaticamente se coloca na posição de ouvinte e não da jornalista afoita por respostas rápidas ou emendando mais questões. Ela percebe que os silêncios são necessários para Laerte elaborar sua resposta mais sincera, mais profunda, ou expor sua mais latente insegurança. Assim, Laerte vai se expondo pouco a pouco naquela casa que, até então, parecia inacessível.

O que permite que Eliane vá, como ela mesma diz, por camadas mais profundas, partindo da relação da cartunista com os pais e como foi para eles ter o filho, com quase 60 anos, três casamentos e três filhos, se mostrando ao mundo como mulher. “Eu sabia que ela não ia de maneira nenhuma me renegar, ou coisa desse tipo, mas eu sabia que ela tinha objeções a colocar”, diz Laerte, no documentário, sobre a mãe, que chegou a lhe oferecer saias e vestidos que não usava.

Mais adiante no filme, a cartunista fala de seu desejo e também de suas inseguranças em fazer implante de seios. Na conversa com a imprensa, nesta semana, Laerte diz que ainda não resolveu essa questão. “O nosso querer aos 66 anos é diferente do querer aos 3 ou 4”, afirma. “Passada uma experiência de vida como a que eu passei, o que é entrar numa mesa de cirurgia aos 66 anos? Meu cotidiano comporta isso: ficar um mês de molho? Tem uma série de pequenas questões. Depois outra: o que é este corpo? Todas essas coisas se colocam entre uma decisão de eu ligar para o cirurgião e falar ‘vamos fazer na semana que vem?’. Pode ser que eu nunca faça.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.