Dick Farney: sinônimo de elegância

Em 1946, ainda não havia o Frank Sinatra que conhecemos hoje. Também não havia o que muitos chamam de hoje de “standard”, que virou praticamente um estilo de música norte-americana (às vezes chamado de “vocal”). E o que é isso? É a junção de uma composição geralmente romântica, com um arranjo delicado à base de cordas e salpicado de metais e uma interpretação suave, mas máscula. Quando resumimos assim, temos logo em mente Sinatra, e temos a certeza de que foi ele quem criou esse estilo.

É certo que antes houve gigantes. Pelo menos dois cantores que ensinaram a Sinatra o que ele deveria fazer: de um lado, Bing Crosby, o primeiro “crooner’ a entender a existência do microfone e não berrar, e sim interpretar as canções; de outro, Louis Armstrong, que detinha o swing perfeito para os temas de jazz e blues que pululavam naqueles tempos. Unindo estes dois mestres, Frank achou seu caminho. Que também tem o arranjador Axel Stordahl como personagem fundamental.

Ele, como maestro de vários 78 rotações de Sinatra, começou a criar a cama que acompanharia o cantor por toda a carreira – depois ajeitada por Nelson Riddle e continuada por Don Costa, Gordon Jenkins e Quincy Jones. Mas por que toda essa introdução quando, como está lá na abertura, o texto é sobre Dick Farney? É que, como já está dito na primeira frase, em 1946 ainda não havia o Frank Sinatra que conhecemos hoje. Não havia, portanto, um estilo “standard” a ser copiado. Pelo contrário, foi na mais pura intuição que Dick cantou e que Radamés Gnatalli arranjou Copacabana, de João de Barro e Alberto Ribeiro.

(Claro que Dick e Radamés não fizeram tudo sem saber o que acontecia em volta. Cantor no Cassino da Urca, Farney tinha acesso a várias orquestrações, algumas delas repassadas pelo maestro Bill Hitchcock. Radamés, com a experiência da rádio Nacional, adaptava muitos clássicos americanos para o samba-canção. Mas certamente os dois não tinham a noção do que iriam conseguir. Fecha parêntese.) No Brasil (talvez no mundo), era a primeira vez em que uma composição geralmente romântica, com um arranjo delicado à base de cordas e salpicado de metais e uma interpretação suave, mas máscula, se uniam numa mesma gravação. Só por isso Dick já entraria para a história da música popular brasileira.

Mas não foi só isso. Em um resumo muito simplificado, Dick Farney é sinônimo de elegância na música mundial – sim, pois ele foi e é admirado por gerações de cantores e pianistas de jazz e “standard” no Brasil, nos Estados Unidos e no Japão. Nascido Farnésio (é, Farnésio) Dutra e Silva, ele transformou a forma de cantar no País. Antes dele, havia os grandes cantores do rádio. Orlando Silva, Carlos Galhardo, Francisco Alves, Vicente Celestino, Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas – todos eles fizeram muito sucesso, e com justiça. Mas todos tinham vozeirões, do tempo em que não havia microfones para captar a voz deles, e eles precisavam ser ouvidos em todo o teatro (daí a acústica dos teatros mais antigos ser melhor que a dos mais novos). Quando o microfone e o rádio chegaram ao Brasil, eles estavam consagrados ou formados como artistas, e não conseguiram se adaptar. Ou nem quiseram.

Dick Farney diluiu aquela força e transformou em suavidade. Era tão suave no início da carreira que não se sentia à vontade para cantar sambas. Teve que ser convencido por João de Barro, que lhe deu Copacabana de presente. Aí começou sua história como cantor de música brasileira, interrompida em 1947 por uma temporada nos Estados Unidos. Lá, teve programa na NBC, teve a primazia de lançar o clássico Tenderly (“standard” total) e acabou voltando porque, apesar de estar bem por lá, fazia sucesso tremendo por aqui.

Era uma revolução. Compare a extraordinária versão de Aos Pés da Cruz (Marino Pinto / Zé da Zilda), com Orlando Silva, e Marina (Dorival Caymmi), com Dick. Nem parecem que são sambas. E são (assim como a versão de João Gilberto para Aos Pés da Cruz ta,mbém é samba). Dick é proprietário de uma música diferente, sem balangandãs – sem ele, talvez nunca tivéssesmos abandonado os balangandãs. Ao contrário, Dick tinha o poder de transbordar categoria quando cantava. Sua voz, talvez a mais bela voz masculina da história da música brasileira, foi a que mais se aproximou de (olha ele de novo) Sinatra em charme e sedução. Dele se pode dizer, como se diz de Sinatra, que cantava como se estivesse sussurrando no ouvido da mulher amada. E foi assim que construiu um repertório que poucos ousam regravar: além de Marina e Copacabana, Somos Dois, A Saudade Mata a Gente, Uma Loira, Ponto Final, Alguém Como Tu, Nick Bar…

Foi o grande intérprete dos sambas-canção “urbanos’ de Caymmi, como Não Tem Solução, Nunca Mais e Nem Eu. E, claro, Teresa da Praia (Tom Jobim / Billy Blanco), em parceria com Lúcio Alves e que foi talvez o grande êxito popular de Dick. Mas eram outros tempos. E os jovens que chegaram a criar um fã-clube para Dick Farney e (adivinhem?) Frank Sinatra no Rio de Janeiro foram os principais incentivadores da Bossa Nova – que só existiu porque o público e as gravadoras admitiam cantores de vozes mais suaves, o que certamente não aconteceria antes de 1946. Dick foi “atropelado’ pela nova onda, retraiu-se em São Paulo e em Nova York, tocando jazz nos bares e para amigos. Aparições na TV foram poucas nos seus últimos 25 anos (isso mesmo) de vida. Discos, também poucos. Assim, a memória que se tem hoje de um dos maiores cantores da nossa música é pouca. Mas há coletâneas, arquivos pela internet, vídeos no YouTube. É possível conhecer uma parte da história do Farnésio Dutra e Silva que virou Dick Farney e inventou um jeito de cantar. Mas inventou tão bem que muitos tentaram imitar, mas ninguém conseguiu se aproximar da qualidade de Dick.

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