Havia gente tendo ataques de nervos no final da premiação do 68º Festival de Cannes. Um jornalista português achou uma vergonha o júri presidido pelos irmãos Coen ter premiado Mon Roi, de Maïwenn. A reportagem já cravara essa vitória. Disse que Emmanuelle Bercot faria história no maior festival do mundo. Depois de abrir o festival, como realizadora, com La Tête Haute, ela tinha toda chance de vencer o prêmio de atriz por seu papel no filme de Maïwenn.
Ambas, a atriz e a diretora, já haviam trabalhado em Polissia, premiado em Cannes em 2011. Os críticos detestam Maïwenn. Acham-na ingênua, quando não “naif”, em sua visão de cinema e de mundo. Mas ela constrói suas cenas na intensidade. Leva os atores ao limite, improvisa com eles. Há um diálogo que beira o inacreditável em Mon Roi. Depois de ter orgasmo, Emmanuelle chora e diz que seu ex reclamava de sua vagina larga. Vincent Cassel, que contracena com ela, diz que o problema não era dela, mas da genitália do ex.
O prêmio para Emmanuelle Bercot, dividido com a Rooney Mara de Carol, de Todd Haynes, mostrou que os Coen e seus jurados não estavam ali para satisfazer expectativas, e sim para subvertê-las. A imprensa norte-americana queria Cate Blanchett e já antecipava outra indicação para o Oscar, por Carol. O prêmio de interpretação masculina também não foi para os atores de Paolo Sorrentino em Youth – que aliás, não ganhou nada. Vincent Lindon foi o vencedor, por A Lei do Mercado, de Stéphane Brizé. Foi o filme mais engajado, de esquerda, da competição, um duro ataque à desumanidade das leis do mercado, que transformam o desemprego em ferramenta para corrigir a baixa dos lucros.
Vencedor do prêmio da crítica, o húngaro Laszlo Nemes levou o Grande Prêmio (do júri) por seu belo O Filho de Saul. O outro favorito do repórter, o mexicano Michel Franco, levou o prêmio de roteiro por seu longa em língua inglesa, Chronic. E a Palma de Ouro foi para a França – Dheepan, de Michel Audiard. Esse, sim, foi o mais inesperado dos prêmios, mas talvez os jornalistas não tenham prestado atenção. A entrada dos convidados já antecipa um pouco o resultado. Só vai quem ganha. E Audiard, com seu chapéu peculiar, chegou sorridente, superfeliz. Algum passarinho já lhe cantara que a noite seria boa para ele.
As vitórias de Jacques Audiard, Stéphane Brizé e Maïwenn foram boas também para o presidente do festival. Embora a seleção oficial seja uma escolha do curador Thierry Frémaux, Pierre Lescure, que substitui o lendário Gilles Jacob na função, estava sendo criticado pelo excesso de filmes franceses – cinco! – entre os 19 da competição. Ele pode agora apresentar resultados e fortalecer-se no posto. O prêmio de mise-en-scène (direção) contemplou o filme talvez mais refinado dos que concorriam à Palma. Mesmo quem reclamou da dramaturgia de O Assassino, o filme de artes marciais do mestre de Taiwan, Hou Hsiao-Hsien, reconheceu a beleza das imagens e da trilha, a elegância dos movimentos de câmera. Tudo isso compõe a mise-en-scène e, para quem consegue ver, também as dramaturgia sempre tênue, delicada do cinema de Hsiao-Hsien.
Para dizer a verdade, o mais discutível dos prêmios foi o do júri, mas também era esperado. O humor negro e uma certa bizarrice de The Lobster, do grego Yorgos Lanthimos – na Terra do futuro, os solitários são transformados em animais -, tinha tudo para agradar aos irmãos Coen, e Ethan e Joel morderam a isca. Bizarrice à parte, a seleção deste ano apostou no social mais que no glamour e equilibrou grandes nomes com novos talentos. Pode não ter sido a seleção ideal – franceses demais, latinos de menos -, mas, na falta de grandes filmes, mostrou muitos bons. Além do social, apontando para o pé no chão – na entrevista que deu ao Estado, Pierre Lescure disse que só pediu a Frémaux que evitasse o glamour fora de tempo e espaço -, os filmes falaram muito de morte. O pai do filme de Nemes tenta enterrar dignamente o filho morto nas câmaras de gás dos nazistas, o enfermeiro de Chronic trata de doentes terminais, os exilados de Sri Lasnka fazem tudo para sobreviver em Dheepan. Na França ainda traumatizada pelo ataque ao Charlie Hebdo, a seleção de Cannes, e a Palma, refletiram a crise.
Veja a lista de ganhadores:
Grande prêmio: Laszlo Nemes, por Saul Fia
Melhor diretor: Hou-Hsiao-Hsien, por The Assassin
Prêmio do júri: Yorgos Lanthimos, por The Lobster
Câmera de Ouro: César Acevedo, por La Tierra y la Somba
Melhor roteiro: Michel Franco, por Chronic
Melhor atriz: Rooney Mara, por Carol
Melhor ator: Vincent Lindon, por La Loi du Marché
Curta-metragem: Ely Dagher, por Waves ’98
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.