Há exatamente dez anos, eu estava em Nova York, após cumprir indefectível missão paterna – levar um filho a Disneyworld. Em uma livraria, encontrei alguns periódicos dedicados a música popular e imediatamente lembrei de um amigo muito querido, entre cujas paixões estava a arte protegida por Euterpe. “O Aramis vai gostar disso”, pensei, reunindo as publicações aos demais livros que comprei. Não sabia eu que, naquele momento, Aramis Millarch já estava no Olimpo, possivelmente marcando uma entrevista com a própria Euterpe e as demais musas, com a interveniência de Vinicius de Moraes (com certeza ainda patrono de seu estúdio olimpiano) e tantos outros amigos seus que o antecederam na subida à montanha sagrada.
Recebi a notícia apenas em agosto daquele ano de 1992, já de volta a Brasília, onde estava residindo. Confesso que custei a acreditar, embora estivesse entre os seus amigos mais próximos que, conhecendo os seus problemas de saúde, sabiam que o inevitável estava já rondando os seus passos. Dividi com Teresa a tristeza e revimos a última foto junto a Aramis, durante um festival de cinema candango por ele assistido, pouco tempo antes.
Não há porque lamentar a morte, único momento inconjurável para quem está vivo. Quanto mais próximos estamos das curvas construídas pelas estatísticas de expectativa de vida, mais se ampliam as notícias sobre as viagens definitivas de um ou outro amigo, de parentes, de conhecidos mais distantes. O que sentimos profundamente, na realidade, é o desaparecimento prematuro de pessoas que dão sabor às nossas vidas, notadamente aquelas que traduzem o significado exato a palavra amizade, contrastando com a quase perenidade de tanta gente que se satisfaz em azedar a vida dos outros. “Vaso ruim não quebra”, já diziam nossos antepassados. E temos que nos conformar com a sucessão de perdas aparentemente injustas, como a de Aramis, levado aos 49 anos por Apolo e Dionísio, muito provavelmente para que testemunhasse e registrasse alguma querela entre os animadores culturais da montanha grega.
Sabemos que suas quase cinco décadas de convívio terreno originaram mais produção jornalística que a vida de muitos anciãos das academias. Sabemos que sua vida profissional não se restringia a unir letras para encher colunas de jornal e que, por trás de cada palavra impressa destinada a construir a história dos fatos, também se encontrava a inquietação com a cultura de sua cidade, de seu estado e de seu país. Nos elogios ou críticas desfavoráveis desferidos por suas bem traçadas linhas, estava sempre o incentivo a uma ação positiva, a uma idéia brilhante, ou uma dura observação sobre eventual descaso de um governante de plantão. Porque Aramis, buscando ser imparcial em sua profissão, nunca escondeu sua parcialidade quando se tratava de defender os amigos, principalmente aqueles que, a seu juízo, semeavam produtivamente na seara cultural. Sem considerar-se um artista, estava sempre cercado por eles. Nas reuniões em que participava, não raro lançava alguma idéia original, nem todas exeqüíveis, mas quase todas cheias de fervilhante entusiasmo. Um disco, um livro, um evento – e muita produção cultural surgida da cabeça elétrica de Aramis.
Eu mesmo devo a ele algumas ações no campo da cultura, principalmente quando passei pela coordenadoria de ação cultural da Universidade de Londrina, lá nos já distantes anos de 1975 e 1976. A partir de uma idéia sua organizei um encontro de entidades culturais da região Sul, cuja marcante conseqüência foi fixar no norte paranaense o maestro Othonio Benvenuto (hoje prosseguindo sua catequese musical no estado de Tocantins), a cuja batuta foi confiada a reorganização do Coral da UEL e as fundações da orquestra sinfônica da universidade, mais tarde dinamizada por Norton Morozovicz. Graças a sua amizade, conseguimos estabelecer uma ponte cultural entre Curitiba e Londrina, fazendo com que algumas excursões artísticas com destino ao Paraná tivessem maior rendimento de público. Pois Aramis era um empresário que nada ganhava além da satisfação de estar protegendo a sua já enorme canastra de amigos. Nessa ponte viajaram Vinícius e Toquinho, Elis Regina, Arthur Moreira Lima, Turíbio Santos, Paulo Tapajós (e seus não menos talentosos filhos), Sérgio Ricardo, Altamiro Carrilho e seus chorões. E por falar em chorinho, foi também pelas mãos de Aramis que conheci o jornalista Ilmar de Carvalho, com quem eu iria reunir, em 1976, a mais fantástica tribo de artistas da MPB em torno do I Encontro Nacional do Choro. Nas longas cartas que, de tempos em tempos, me endereçava, sempre havia uma idéia nova a pulsar nas linhas e entrelinhas.
Rotineiramente atento às ações dos soldados da cultura artística (em sua coluna “Tablóide”, do jornal O Estado do Paraná, ele mantinha a seção “No campo de batalha”), Aramis era o melhor dos estrategistas, o maior, sem dúvida alguma, entre os animadores culturais do Paraná. Como jornalista, “Millarch foi (entre aqueles que se iniciaram nos anos 60) o mais importante, com uma obra que se projeta no país, reconhecida sobretudo no levantamento da memória da música popular brasileira contemporânea”, como registrou, há dez anos, seu colega Aroldo Murá.
Felizmente Marilene e Francisco, a esposa e o filho que formaram, junto com Aramis, a sagrada família Millarch, tiveram a iniciativa de organizar o imenso baú de textos que ele juntou em sua fecunda produção jornalística, a par da grande biblioteca e do vasto arquivo fonográfico residentes no sobrado da rua 24 de Maio, sede do Estúdio Vinicius de Moraes. Para aquele endereço também foram enviadas, há uma década, muitas promessas de poderosos da época, mas poucas foram cumpridas. Graças a um paciente trabalho de formiguinha, com o auxílio de umas poucas entidades, nasceu um site (www.millarch.org) que está se encarregando de perenizar a sua obra, composta de mais de 50 mil artigos e mais de 5 mil entrevistas. Apenas metade do extraordinário acervo foi digitalizada, mas enquanto o restante não é transformado em bits e bytes, já podem as novas gerações conhecer o trabalho desse notável paranaense, vítima literal de uma de suas melhores qualidades – possuir um grande coração – e que morreu como sempre viveu: abraçado à sua máquina de escrever.
No último dia 13, decidi cumprir um ritual para o amigo morto, já que não pude prestar pessoalmente minha homenagem há dez atrás. Com Marilene, Teresa e nosso filho Pablo, levantamos copos com vinho em um brinde saudoso a Aramis Millarch. De minha parte, estou certo de que ele, lá do outro lado, patrocinado por Dionísio, o deus do vinho, também ergueu a sua olímpica taça de néctar, dividindo com os artistas e as musas bons bocados de ambrosia, com a costumeira benção das Cárites, as deusas da fertilidade, do encantamento, da beleza e da amizade.
* Edilson Leal, dublê de jornalista e promotor de justiça, usou o mesmo título “Cinco anos sem Aramis” há cinco anos, lamentando a ausência de Aramis, nosso comum amigo. Considerando que a saudade é a mesma, creio que o plágio não é condenável.
Cleto de Assis é jornalista e especialista em educação à distância.